Endereço de correio eletrónico

ociclista@aeanadia.pt

sábado, 16 de novembro de 2019

Sentidos Bucólicos - Concurso literário “Ler & Aprender”


Parabéns David, pelo 1.º lugar alcançado no Concurso “Ler e Aprender”!
O Ciclista, Clube de Jornalismo do AEA




“O que é preciso é ser natural e calmo (…)
Assim é e assim seja.”
Alberto Caeiro
Capítulo I
A neblina erguia-se do rio suavemente e inundava a clareira ladeada de choupos onde a erva alta e verdejante colecionava gotas gordas de orvalho. Por mais efémeras que fossem, lutavam por se manter equilibradas nas extremidades das ervas vergadas pelo seu peso. Os choupos centenários, que muralhavam aquele pequeno círculo a céu aberto, observavam o outono a despir as suas copas e a almofadar o solo com as folhas secas, transformando-o numa manta retalhos de amarelos, cremes e castanhos. O silêncio que ali imperava, apenas interrompido pelo ocasional grasnar de um corvo revoltado e pela sinfonia harmoniosa das águas do rio e do vento a acariciar os ramos nus das árvores, foi abruptamente eclipsado por uma alma errante.
Uma alma de olhos verdes que espelhavam o verde da erva como se a Natureza nem se tivesse preocupado em substituir a palete de cores quando os criou aos dois. Cabelos ruivos como as abóboras que se amontoavam nos celeiros e esperavam o destino deleitoso das papas com canela. Cara magra e pontilhada de sardas, com maçãs do rosto protuberantes e maxilares salientes como se quisessem romper a pele. No seu rosto macilento, abria-se um sorriso largo que denunciava os seus dentes de uma extrema alvura enquanto fazia arrastar as suas pernas magras e branquinhas acumulando montículos de folhas que se erguiam ruidosamente. Deixando um rasto de destruição inocente nas colónias de insetos que se haviam refugiado no abrigo das folhas, aproximava-se da clareira, erguia a fronte para o céu e analisava as nuvens grisalhas e raiadas. Espontaneamente, fez-se ouvir na sua cabeça a sábia voz da avó:
- Céu cavado, chão molhado!
A chuva avizinhava-se. No entanto, não recuou e continuou a vaguear pela floresta. Ao longe, os sinos da igreja chocavam estrondosamente fazendo ressoar pelas redondezas aquele fragor que condizia com o progressivo escurecer. O ruído impelia o rapaz a erguer a mão ossuda ao ouvido e a desligar furtivamente o aparelho que, após um curto e agudo sonido, extinguiu todo o ruído à sua volta. Prosseguia a sua caminhada, mas agora, sem o barulho rítmico das folhas arrastadas a seus pés, o que lhe dava a sensação de estar a flutuar.
Relembrou-se de que tinha de estar em casa antes do sol ceder o lugar à lua, mas não queria regressar antes de visitar o seu reduto. Assim, começou a correr velozmente desviando-se agilmente das árvores, até que irrompeu pela clareira adentro e destroçou o frágil equilíbrio do orvalho. Mergulhou por entre a erva e deitado naquela cama, contemplou os ramos nus dos choupos que o recordavam dos dezassete outonos que já havia saboreado e sofrido, embora pouco ou nada se lembrasse dos primeiros cinco. A reflexão pouco durou e relutantemente teve que se pôr a caminho de casa. Passou pelos trilhos anteriormente abertos por si mesmo, pelas vinhas recém-podadas e saltou o muro baixo de xisto que separava as terras de um carreiro de terra batida por onde passavam as ovelhas e o seu pastor. Esse mesmo carreiro que o conduzia à aldeia deu lugar à rua calcetada ao mesmo tempo que o cheiro a barro molhado, a gado e a verdes era destronado pelo fumo das várias chaminés que inundavam o ar com aquele aroma que inspira e pressagia o inverno.
O mesmo fumo enleava-se com a atmosfera húmida e fria que se sentia nas ruas lavadas pela chuva, desertas naquela hora e tenuemente iluminadas pelos raros candeeiros e pelas luzes que se escapavam pelas janelas das casas. A luz, o frio e aquele aroma nostálgico cozinhavam um ambiente místico que seduzia o rapaz. O seu passo, agora lento, fazia-se anunciar pela batida seca do pequeno salto dos seus sapatos nos paralelos de granito.
Apesar da camisola de lã que levava sob a camisa e das meias altas que encontravam os calções ao nível dos joelhos, o frio da noite gelava-lhe o nariz, as orelhas e as pontas dos dedos. Apesar disso, ele gostava e desejava aquela dor. O frio doía-lhe intensamente, mas era simultaneamente entorpecedor e revigorante. Numa atitude quase masoquista arregaçou as mangas e inspirou profundamente para logo de seguida expirar uma nuvem gigante de vapor que ambicionava atingir as proporções das que se encontravam no céu.
Nutria uma paixão saudosista tanto pelo outono como pelo inverno e embora desejasse, por vezes, que fossem eternos logo a seguir refutava o seu desejo ingénuo com a ideia de que precisava do verão e da primavera, pelo menos, para poder ansiar pelas suas estações prediletas. Acreditava que mais que estações da natureza, o outono e o inverno eram estações da alma.
O frio gélido sempre o havia fascinado pelas sensações e sentimentos que lhe despertava. Enigmaticamente, sentia-se mais sólido, mais consistente no seu ser, não sentia a sua essência dispersar-se. Contrariamente, o verão trazia consigo o calor insuportável que fazia evaporar a sua existência física dando-lhe a sensação de que a qualquer momento poderia diluir-se ou esfumar-se. O frio dava-lhe segurança, o calor, receio. Os arrepios que lhe formigavam o corpo, desaguavam em borboletas que sentia na barriga e, apesar disso, acreditava que era uma ideia bizarra e nunca se atreveu a confessá-la a quem quer que fosse.
Enquanto meditava esta sua reflexão, deu por si à porta de casa e o pensamento evadiu-se da sua consciência mal sentiu o aroma do jantar. Entrou, esgueirou-se pelas escadas, descalçou os sapatos enlameados e desceu deslizando de meias pelo soalho até à cozinha onde balbuciou uma desculpa qualquer pelo atraso. Sentou-se à mesa e com gestos calmos e lentos levava as colheradas de sopa à boca saboreando cada uma como se fosse a última. Mal detetava o assunto fútil ou o tema desagradável que invariavelmente se discutia à hora de jantar, desligava discretamente o aparelho auditivo e deleitava-se com a comida. Ocasionalmente cerrava os olhos e ficava a sós com o seu paladar e o seu olfato. A momentânea interrupção da audição e da visão permitia-lhe explorar as complexidades dos aromas e sabores de uma humilde sopa, desenvolvendo-se numa miríade de sensações inacessível aos demais. O seu espetro sensorial havia ultrapassado as fronteiras do vulgar possivelmente devido à surdez. Com a ausência de um dos sentidos, os restantes encontraram um vazio que devia ser preenchido e expandiram-se até níveis fora do comum. Assim, desde cedo o rapaz encarou a sua peculiaridade não como uma maldição, mas sim como uma dádiva.
Quando reabriu os olhos, constatou que a acérrima discussão ainda não havia terminado e escapuliu-se da mesa sem que tivessem notado a sua ausência. Subiu para o quarto e, quando abriu a porta, reparou nas gotas que se acumulavam na janela, assim que ligou o aparelho ouviu a chuva ensurdecedora que bombardeava o telhado da casa. A ela aliava-se o vento que assobiava por entre as frestas das janelas e, ouvindo a melodia deste bulício, o rapaz adormeceu como se a Natureza lhe tocasse uma lira de embalar.
Foi neste dia que o vi pela primeira vez. Foi neste dia que o segui até casa e da rua obscura o observei pela janela. Foi neste dia que, meditativo, concluí, enquanto o contemplava, que, tal como as gotas de orvalho que ele havia destroçado, também a sua vida estaria condenada à efemeridade.

Capítulo II
Na manhã seguinte, quando a lua já visitava terras longínquas que ele jamais vislumbraria, despertou. Pulou energeticamente da cama e desceu descalço, de cuecas e com a camisola de lã para tomar o pequeno-almoço. A casa estava deserta, mas o vapor que se escapulia da cafeteira indicava que os outros haviam saído há pouco tempo. Aproveitou a ocasião e sentou se em cima da mesa de pernas cruzadas, pegou no pão e rasgou um pedaço junto ao nariz para lhe extrair o aroma, pegou num frasco de doce de mirtilo e noutro de mel e deliciou-se enquanto fatiava finamente uma maçã que polvilhou com canela. Naquele momento não desejaria nada mais que aquilo, aquele banquete pacatamente simples, aquecido pelos raios de sol que invadiam a casa e lhe secavam as remelas nos olhos.
Após aquele prazer gustativo, abandonou a cozinha e foi lavar a cara. Encarando o seu reflexo no espelho, despiu a camisola e com as mãos geladas percorreu, de forma hesitante, o pescoço, as clavículas frágeis, o peito e os ombros. Ora tateando delicadamente, ora apertando dolorosamente, vigiava a mão a sondar a sua pele morna que se arrepiava ao contacto com as mãos frias que pareciam ter ganho uma certa autonomia e exploravam perplexas e curiosas.
Depois de saciado, lavado e vestido com o perfume da alfazema que escondia no armário, saiu de mãos livres e partiu para as marinhas de arroz. Prontamente chegou aonde pretendia. Um pensamento que vinha a ganhar forma ao longo do caminho, adensou-se assim que se sentou à sombra de um salgueiro ancião que vigiava as cegonhas. Esta ideia, que havia tomado como refém a sua atenção, agradava-lhe. Muitas vezes, ideias como estas nasciam-lhe depois de horas e horas a cogitar, mas esta surgiu-lhe espontaneamente. Sempre se havia alheado de tudo e de todos numa solidão autoinfligida e recentemente havia encarado a vida de uma forma natural, pura e simples, aceitando estoicamente a ordem e a inevitabilidade do curso da Natureza. Deste assentimento nascera uma conduta singela e uma reverência pelo mundo natural e rural. Contudo, o mistério e a incerteza da sua existência continuavam a agoniá-lo repetidamente, até que, neste dia, decidiu abraçar a incapacidade de escapar ao desconhecido, iniciando uma dança com a incerteza e o absurdo.
Enquanto contemplava a paisagem pintada diante de si, avistou alguém que a pintava, literalmente, na outra margem da marinha. Era uma velhinha de cabelos prateados que refletiam os raios de sol e, embora estivesse longe, o rapaz identificou-lhe uma certa tenacidade nos gestos e nas pinceladas. Encontrava-se exatamente voltada, tal como a tela, na direção do salgueiro enorme. Também ele estaria a ser retratado ainda que apenas como uma silhueta humana indistinta.
No entanto, o rapaz, assim que pôde, rebolou da sombra gelada do seu confidente e sentou-se encostado a um tronco caído ao sol. Era um daqueles dias em que, à sombra, era inverno e, sob o sol, era verão. Misteriosamente estes dias eram propensos à reflexão. Subitamente, apercebeu-se de que talvez tivesse sido indelicado com quem se dava ao trabalho de o esboçar e pintar, mas quando desviou o olhar para o lugar onde poucos minutos antes a senhora estava instalada, constatou que ela havia desaparecido. Rapidamente, um sentimento de remorso apoderou-se do rapaz apesar de não ter sido manifesta maldade quando escapou ao seu olhar atento. O que ele não sabia é que a missão da pintora estava concluída.
Nesse mesmo dia, redigiram o epitáfio da artista sexagenária e eu nem esperei que o inscrevessem na lápide para usurpar a sua derradeira obra.
Capítulo III
Quando o céu se acinzentou e os ventos submeteram os ramos do salgueiro à sua fúria, o rapaz decidiu regressar a casa. Apesar das gotas que o céu começava a derramar hesitantemente, o passo do rapaz manteve-se impassível na sua lentidão. Nem mesmo quando as nuvens ganharam uma coragem impetuosa e explodiram de forma torrencial e incessante ele se apressou. Completamente encharcado, caminhava serenamente à medida que as gotas lhe caíam violentamente na cabeça, pingava por todos os lados e dos cabelos escorria uma cascata que lhe cobria a cara. Se por acaso estivesse a lacrimejar, ninguém que o encarasse notaria nas suas lágrimas. Não era o caso, muito pelo contrário, a serenidade do seu passo espelhava a serenidade da sua consciência. Havia chegado a uma conclusão que lhe parecia tão vulgar ou escassamente interessante que não era razão para correr e anunciá-la ao mundo.
No entanto, era aquele entendimento que me estava a estorvar a tomada de uma decisão, ou melhor, a concretização de uma sentença que há muito tempo já estava determinada e que tristemente já me era implacável.
Não sabia o que lhe havia guiado ao encontro daquela intuição, não tinha sido fruto de nenhuma epifania nem de um intenso raciocínio. Contudo, havia alcançado a chave para uma vida plena, o sentido que muitos ambicionavam e poucos logravam. Tantos dedicaram a vida à tentativa de desvendar essa charada, tantos se sacrificaram e quantos encontraram um beco sem saída? Complicaram o que era simples à partida. A todos estava acessível e a tão poucos foi claro. E o rapaz vislumbrou-o na contemplação daquilo que todos olham diariamente, mas que poucos veem: a Natureza.
No dia e na noite, no sol e na lua, no calor e no frio, nos ramos da árvore que tentam alcançar as nuvens e na sua raiz que se enterra aconchegadamente na terra. Foi esta dualidade que poucos souberam aplicar à condição humana, também ela repleta de ambivalências, numa atitude de superioridade face à Natureza e alheando-se da forma como a integram. Uma vida na corda bamba, lutando pelo equilíbrio. É a compreensão da inevitabilidade e da necessidade do que é positivo e do que é negativo na vida. Nesta essência reside o segredo. Na sua candura o rapaz alcançou-a.
Que martírio agoniante este. Observei os humanos no seu melhor bem como na sua faceta mais obscura. Não faltei a nenhum dos desastres da História. Contudo, quando a hora daquele rapaz se aproximava não deixei de sentir um peso na consciência e um remorso terrível que me consumia as entranhas. Uma vida que poderia ter sido usufruída tão sabiamente e, no entanto, estava condenada a sucumbir tão abruptamente.
Capítulo IV
Nos dias que se seguiram, o rapaz contraiu uma moléstia que piorava vertiginosamente, até que numa manhã em que o sol demorou a nascer e a lua teimava em não ceder o seu lugar, o rapaz, deitado placidamente e espreitando as copas das árvores pela janela, deu o seu derradeiro suspiro de complacência. Branco como os lençóis que cobriam a sua fragilidade, sussurrou pouco antes na solidão para que a Parca o escutasse:
- Talvez quisesses que as borboletas no meu ventre se transformassem em cinzas na minha boca, mas eu entrego me serenamente e sem rancor à tua imperial vontade. Eu aceito-te. Aceito-te como aceito tudo naturalmente. Abraço-te como acolho da mesma forma o dia e a noite e o florir de uma flor que flore sem saber. És, para mim, nada mais que uma trovoada e nada menos que o canto das andorinhas.
A Morte escutou melancolicamente e murmurou sob o silêncio:
- Perdoa me, meu rapaz.
Naquele dia a Morte folgou o mundo do seu laborioso calvário e vagueou pelas marinhas de arroz. Contemplou pensativamente o gigante salgueiro cujo tronco se aconchegava de musgo e rebentos de fetos. Delicadamente, extraiu um papel dobrado do bolso que desdobrou cuidadosamente e, à medida que inclinava o olhar, admirou a pintura de dois olhos intensamente verdes como o musgo que cobria o salgueiro-chorão. Voltou a erguer a face e dos seus próprios olhos brotaram lágrimas inauditas.
FIM
David Pires, 12.º Ano, Escola Básica e Secundária de Anadia

Sem comentários:

Enviar um comentário