Endereço de correio eletrónico

ociclista@aeanadia.pt

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O Tejo e a neblina - Concurso literário “Ler & Aprender”


Parabéns João, pela Menção honrosa no Concurso “Ler e Aprender”!
O Ciclista, Clube de Jornalismo do AEA

Concurso de escrita (Abril de 2019)
Tema livre
Autor: João Farinha Margarido Chamiço

O Tejo e a neblina
Tinha seis anos apenas, aquele menino que pulou da cama a meio da noite, quando o pai se apressava para se por a caminho.
Eram 4h30 de uma madrugada tépida de verão. As pestanas tentavam teimosamente fechar-se sobre os seus olhitos baços de sono e, a permanente lembrança, do aconchego dos lençóis, adensavam-lhe ainda mais a vontade de ficar na cama. Porém, a carroça de grandes rodas de madeira e ferro, rapidamente se pôs ruidosamente em marcha, por esses caminhos, umas vezes de macadame e, outras vezes, as mais das vezes, apenas de terra e calhaus.
 Fig. n.º 1 - O caminho para o Cais da Amieira do Tejo.
Ver o rio Tejo pela primeira vez e, mesmo passar, para lá dele, fazer a travessia lá na Barca da Amieira, juntamente com a carroça e a mula e uma data de gente nunca antes vista, era uma odisseia a que nem todas as crianças tinham a oportunidade de ter acesso. Daí que, todos os sacrifícios valessem a pena, ainda que isso implicasse saltar inusitadamente da cama a meio da noite, em vez de ficar comodamente deitado, até para lá do nascer do dia. 
A casa onde moravam, na aldeia de Vale da Feiteira, na freguesia da Comenda, rapidamente desapareceu do alcance da vista, e a marcha pachorrenta da carroça, prolongou-se por tantas horas, que mais parecia que os levava em busca de algum lugar, num qualquer imaginário fim do mundo. Depois, finalmente, a povoação de Amieira do Tejo.
 Uns longos metros de um velho caminho feito de terra e pedaços de granito, e, logo o cais, ali ao fundo, onde o caminho se extingue abruptamente como que mergulhando no rio.
- Que barca enorme! Exclamou ele admirado com a dimensão da jangada que haveria de os levar a bom porto, já na outra margem do grande caudal, tão enigmático como as eternas nuvens brancas, que se avistavam a quilómetros de distância, a pairar sobre o vale em que o Tejo desliza, ora calmamente, ora furioso e revolto, em direcção a S. Julião da Barra.
 - Que nuvem é aquela, pai? Aquela ali, tão branca, que se estende ao longo de todo aquele vale?
 - Estou a ver. – Aquela nuvem está ali todos os dias, ou quase, é a neblina provocada pela evaporação das águas do Tejo, sempre que determinadas condições atmosféricas se conjugam. E elas conjugam-se muitas vezes!
- Isso quer dizer que é já ali o Tejo?
- É o Tejo sim, mas não é já ali! Apenas parece que é já ali. Vais ver que é muito mais longe do que parece!
 À hora marcada, o barqueiro mandou subir toda a gente; primeiro, a carroça e a mula, depois umas dezenas de pessoas que esperavam pacientemente pelo momento de embarcar, como se fossem atravessar o mar em busca da terra prometida.

A canzoada não parava de ladrar a toda a gente que chegava, mas no momento de embarcar, também eles subiram à barca. Aconchegaram-se a um canto, de onde observavam ininterruptamente a corrente. Todas as bocas caninas se emudeceram tão estranhamente, que mais parecia haver ali um prenúncio de tragédia.
Ou será que os cães faziam reiteradamente aquele silêncio, ao contrário das pessoas que ali iam, porque sabiam por instinto que ali passara o cortejo fúnebre de Estremoz para Coimbra, de uma das mais conhecidas e ilustres Rainhas de Portugal, a Rainha Santa Isabel? 
(Em 1336, a Rainha Santa Isabel, então com 65 anos, deslocou-se a Estremoz no intuito de evitar uma guerra entre o seu filho D. Afonso IV e o Rei de Castela Afonso XI. O nosso Rei Afonso IV havia declarado guerra a Afonso XI, seu genro, devido aos maus tratos, que este infligia a sua esposa D. Maria filha do rei português.
A rainha viajou, contra a opinião dos médicos, desde o convento franciscano em Coimbra, onde se tinha recolhido após a morte de D. Dinis, seu marido e terá falecido nesse dia, depois de apaziguar a contenda.
 As mãos do barqueiro pareciam de ferro, quando este empunhou uma vara enorme que ia firmando no fundo do leito, fazendo deslocar a barca até à outra margem, lá onde o Alentejo acaba e a Beira Baixa começa.
Três ou quatro impulsos da grossa vara, e eis o cais do lado norte do rio.
A Estação de - “Barca da Amieira” servia e, provavelmente serve ainda, os passageiros da linha da Beira Baixa que moram nos dois lados do grande rio ibérico. O cais do lado norte, estava agora ali, à mercê dos embarcados mal eles pusessem os pés em terra firme.
 Os pimentos vermelhos que a ruidosa carroça transportava, destinavam-se à Fábrica de São José das Matas, onde iriam ser moídos e transformados em pimentão, e era nestes meios rudimentares de transporte que eram carreados, desde as terras de produção nas Polvorosas e, noutras herdades, do Alto Alentejo.
 As giestas, floridas de amarelo que cobriram os campos na primavera, há muito que haviam perdido todo o encanto, e ostentavam agora apenas as pequenas vagens cheias de sementes prestes a eclodirem na próxima Primavera.
As flores brancas das estevas haviam perdido todas as pétalas, e não passavam agora de arbustos sequiosos, de folhas luzidias e peganhentas. Das suas belas flores alvas, não restavam agora senão, as coroas esturricadas pelo sol implacável do Alentejo.
Os tojos e os sargaços também se haviam rendido ao rigor indomável do estio, e todas as papoilas vermelhas haviam caducado de vez, e já se haviam despedido, até que o ciclo imparável do tempo, trouxesse até elas, a doçura da próxima primavera.
 Quando finalmente se avistou a Fábrica de pimentão já o sol se aprestava a “afundar-se” no limite do horizonte.
 O animal de jugo estava completamente exausto, e o seu pelo repassado de suor, fazia crer que teria atravessado alguma bátega e, mesmo assim, era como se voasse. Parecia ter a certeza de que era ali que se iria livrar da pesada carga que o atormentava, desde alta madrugada, ainda que, algumas breves paragens pelo caminho lhe tivessem permitido retemperar as forças e aconchegar o estômago com algumas favas e alguns grãos de aveia, que ele sorvia de um saco de serapilheira em que enfiava o focinho até à orelhas, repescando minuciosamente cada pequeno grão.
O miúdo de seis anos, vencido pelo cansaço, depressa adormeceu, apesar da dureza do lastro da carroça.
O regresso a casa aconteceu, já noite adentro, quase à mesma hora a que se iniciara a viagem no dia anterior.
 As nuvens brancas continuavam lá, e o miúdo de seis anos, revivia a lembrança de toda aquela novidade, interrogando-se se a barca e aquele “estranho” barqueiro, que usava a força dos seus braços, como meio de locomoção serrando os grossos punhos em volta de uma espessa vara, que fundeava vigorosamente no leito sinuoso do rio, lá estaria também e até quando?
 Quarenta anos mais tarde, voltei ao rio.  Voltei ao velho cais da Barca da Amieira. Sim, voltei! Porque era eu mesmo, aquele miúdo de seis anos que saltou da cama a meio da noite, para ir ver o Tejo, e aquela estranha neblina misteriosa que se avistava de longe, parecendo querer manter dissimulado o rio lá bem no fundo da ravina, mas que ao mesmo tempo, o denunciava com a sua quase eterna presença.
 Se subirmos a qualquer promontório, desde Gavião, até Nisa, ou até Montalvão, e estendermos o olhar para norte na direcção da Ladeira, o mais provável é podermos observar aquele manto branco que, em certos dias, nos ofusca a visão, a ponto de nos parecer uma cordilheira de montanhas brancas.
 Quarenta anos depois, retomei o percurso, no mesmo sítio, e a viagem não demorou senão uns 30 minutos. De automóvel, claro!
O Castelo da Amieira estava lá como dantes, tal como, o Cais da Barca. A Barca, essa, embora, lá se mantivesse, comparava-se agora a um enorme cetáceo “moribundo” que, fora de água, acaba por morrer. Não havia sinais de barqueiro algum, de grossos braços que pudesse navegar até ao outro lado do rio.
A neblina que se avistara de longe desde que o dia clareara, já se havia dissipado, mas, na manhã de amanhã, ela irá quase de certeza, marcar presença no mesmo lugar.
Vá-se lá adivinhar, se os cães, se ainda os lá houver, irão parar misteriosamente de ladrar perante a eminência do embarque, se haverá carroças e gente, para atravessar o rio, guiados por outro vigoroso barqueiro, que os leve a todos a bom porto noutro cais.

João Farinha Margarido Chamiço, Centro Qualifica, Escola Básica e Secundária de Anadia

Sem comentários:

Enviar um comentário