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terça-feira, 20 de setembro de 2016

A lotaria do amor



Parabéns Margarida, pelo excelente texto e, claro, pelo 2.º lugar (Menção honrosa) conquistado no concurso Ler & Aprender!

A lotaria do amor
- Simão o jantar está no forno!
- ESTÁ BEM PAI!
Desculpem por esta não convencional entrada. O meu nome é Simão, tenho dezasseis anos e vivo sozinho com o meu pai desde que a minha mãe decidiu “afastar-se”. Ela deixou-me na frágil idade de doze anos. Estou no décimo segundo ano e segundo a minha página de facebook continuo solteiro.
Ah… ia esquecendo um “pequeno pormenor de relevo menor” na minha história. É necessário um QI de 140 para uma pessoa ser considerada um génio. O QI de Albert Einstein era de 160 e o meu…. é de 180. Toda a minha vida soube que tinha uma facilidade anómala para aprender e sabia que estava à frente das pessoas da minha idade, intelectualmente. Quando cheguei ao quinto ano já sabia construir funções do quarto grau, ler livros do tamanho da bíblia e construi uma máquina que transformava a energia da água corrente em calor com apenas dez anos.
O meu mais recente trabalho é um teorema que me permite saber a chave completa do euro milhões. Ainda não está completo, na verdade ainda só consegui acertar um número. Trata-se de uma combinação de variantes que nos vão levar a uma chave provável através dos milissegundos que cada bola está a rolar. Se o conseguir acabar vou finalmente ter a certeza de que uso corretamente as minhas capacidades e poderei ter tudo o que desejo. Vou ser dono do mundo!
Alguém me estava a ligar naquela tarde. Era o João. Devia querer pedir ajuda para o trabalho de Física, como é costume. Somos amigos desde que o que saía da nossa boca eram pequenos grunhidos sem sentido mas que, por incrível que pareça, toda a gente acha adorável.
-Sim Jota, o que queres desta vez.
-Pensei que talvez quisesses ajudar o teu amigo em algo muito importante. Tão importante que era capaz de mudar a vida do teu amigo e transformá-lo num pequeno rapaz muito mais feliz, algo que faria o seu futuro ser mais radiante repleto de felicidade…
-Jota não precisas de parecer uma criança. Eu ajudo-te com o trabalho. Além disso queres passar mais logo cá por casa. Podemos fazer uma maratona de videojogos. Traz as pipocas e a Coca-Cola.
-Obrigada Einstein! Posso ir ter contigo agora em vez de ser mais tarde?
-Não, agora não dá. Desculpa.
-Hum, já percebi. Novo projeto. O que andas a tramar desta vez?
-Desculpa mas não te vou contar. – não pensem que quero o prémio só para mim mas não quero estar a desenvolver duzentas horas de trabalho por telefone – Fica para uma próxima.
-Ok. Não faz mal. Por volta das nove apareço aí em casa.
- Fica combinado. Até logo.
Passei o resto da tarde a tentar melhorar o teorema e, acreditem ou não, consegui. Apenas tive de adicionar mais uma raiz de x ao quadrado para alcançar um resultado diferente. Era só aguardar pelo dia seguinte para saber se tinha acertado ou se o meu teorema ainda precisava de remodelações.
No dia seguinte acordei com vontade zero de ir para a escola. Acreditem que muitas vezes torna-se frustrante saber mais que o próprio professor. Mas ainda assim levantei-me, fui tomar o meu pequeno-almoço e só depois de ver o meu pai vestido e pronto a sair de casa me apercebi do quanto estava atrasado. Estivera a jogar com o Jota até à uma da manhã e depois de ele ir embora ainda fui rever o teorema.
Apressei-me o mais que pude. Sinceramente acho que as meias que calcei não eram propriamente da mesma cor mas não tinha tempo a perder.
Quando cheguei à escola, a minha primeira visão foi a Matilde. Não é que seja grande admiração. Ainda não vos contei mas ela é algo que a minha grande paixão desde o sexto ano. A verdade é que eu já me declarei a ela, mas, como me acontece sempre em tudo o que seja assunto não relacionado com inteligência, notas escolares, concursos literários ou olimpíadas de todos os tipos de disciplinas, fui rejeitado. A Matilde era simplesmente boa demais para mim. A mais bela criatura à face da Terra, capaz de criar guerras e construir a paz com a sua palavra. Tudo o que sai da sua boca é da maior pureza existente. Os seus cabelos cor de fogo caíam em duas perfeitas tranças. Um sonho demasiado longe para eu alcançar.
Grande parte da minha grande vontade de fazer com que o teorema dê certo é de certo modo para que ela me veja de outro modo. Nunca fui reconhecido por nada sem ser as minhas notas. Já que tenho tão pouco fora do nível intelectual quero o nome, quero a fama, quero o poder. Não fiquem a pensar que sou convencido ou arrogante. Nunca me senti realizado numa qualquer área senão naquilo que posso atingir com as minhas capacidades intelectuais. Estava decidido a atingir o meu objetivo.
A Matilde veio ter comigo e trazia um sorriso capaz de iluminar o mundo.
-Simão! Atrasado outra vez. Que se passa?
-Nada ando só ligeiramente cansado. Não tenho dormido bem. – a Matilde também ainda não sabia de nada.
-Espero mesmo que seja só isso. Mudando de assunto. A professora Alberta – minha professora de português – faltou. Já foi toda a gente embora para o café jogar bilhar. – ultimamente o bilhar virou a maior moda da minha turma – Não estava com grande vontade por isso pensei em ficar aqui. Podemos ir ao parque junto aos laboratórios de biologia.
- Sim claro. Sabes bem que o bilhar não prende, de todo, a minha atenção.
Fomos andando calmamente para o parque. Há muito tempo que não estávamos tão próximos, talvez desde que eu lhe contei genuinamente o que sentia por ela.
-Está um dia lindo, não achas? - a minha estúpida pergunta só prova que falar do tempo é sempre um tema fácil que nos permite escapar a conversas constrangedoras
-Absolutamente.
- Não está nem muito quente nem muito frio. A temperatura perfeita para uma manhã de Primavera.
-Concordo.
-Bem acho que ambos já percebemos que isto está a ser um pouco estranho. Melhor, muito estranho. Talvez não termos falado grande coisa durante estes meses fosse exatamente para evitar situações como esta.
- Eu sei que está a ser e a culpa de isto ter ficado assim é toda minha. Desculpa ter-me afastado. Tu não fizeste nada de mal. Eu é que estive mal. Não sabia o que te dizer. Tinha medo de estragar a nossa amizade. Tinha medo de ser um fardo para ti. E no fim de tudo fiz muito pior. Deixei-te de lado só porque não tive coragem de te confirmar o que sentia.
-Espera, não estou a perceber o que estás a dizer.
-Pertencemos a mundos diferentes. Eu sempre fui a menina popular que toda a gente tinha em consideração. Tu sempre te tentaste afastar de tudo o que fosse social. Pensei que eramos diferentes. Que tínhamos realidades diferentes mas estava enganada, profundamente enganada. Uma relação não se baseia em unir pessoas com o mesmo estatuto social mas em juntar pessoas capazes de se compreenderem mutuamente. Pessoas que com um simples cruzar de olhar dizem mil palavras. Eu sei que já passou muito tempo desde que me falaste. Talvez a minha hipótese já tenha passado. Mas finalmente percebi o que sentia.
-Não vais tarde Matilde.
Não me contive mais e beijei-a.
-Acho que isso quer dizer…
-…que sim. Eu ainda gosto de ti.
Ainda dizem que o destino não existe. Pois eu não podia arranjar melhor timing e melhor dia para chegar atrasado.
Passei o resto do dia com a Matilde, mas não vou estar a relatar episódios românticos porque já tinha decidido que esta história seria principalmente sobre o meu teorema e não sobre a minha vida amorosa.
  Às nove e meia exatas estava à frente da televisão. Esperava ansiosamente pelo resultado. À medida que os números saiam comparava-os com os meus resultados. Quatro números e uma estrela correspondiam. Mas o que estava mal? Pensei sinceramente que seria desta que iria conseguir prever a chave. Há um ano que andava a trabalhar neste projeto e ainda não obtera os resultados pretendidos.
  Entretanto passaram-se quatro meses. Continua junto e feliz com a Matilde e… continuava sem acertar na chave.
  As aulas tinham acabado e os resultados dos últimos exames já não estavam nas nossas mãos. A Matilde tinha ido passar as férias a Macau com os pais. O João decidiu ir passar uma semana à Noruega com a irmã e eu fiquei em Portugal a torrar no que parecia ser o mês de Julho mais quente de sempre.
  Uma vez que estava sozinho e não tinha distrações decidi focar-me no teorema. Adicionei mais duas incógnitas, v e n, que representavam respetivamente a velocidade que cada bola adquire e o número de voltas que cada uma dava até atingir a o t (representa o momento em que uma bola é escolhida sendo que t=0s é quando a bola começa o movimento). Elevei v ao quadrado e multipliquei n por t. Agora era esperar que estivesse finalmente correto.
  O meu pai não estava em casa nessa noite. Ficara no escritório até tarde a fazer horas.
  De repente ouvi a música do jogo, sinal de que iria começar o sorteio. Seriam já nove e meia? Mas eu ainda nem sequer tinha jantado. Apresei-me a ir buscar a minha previsão e fui compará-la com a do sorteio. Os números foram surgindo. Primeiro apareceu o trinta, depois o vinte e seis, a seguir o cinco, o vinte e o sete. Por fim era tempo de saber as estrelas: dois e nove.
  Olhei sem reação para o meu papel. 5-7-20-26-30 e 2-9.
  Não podia acreditar. Ao fim de tanto tempo, depois de tanto trabalho consegui acertar a chave. Mas o que faria com ela. Era demasiado para mim. Sempre pensei que seria o correto. Sempre foi o que desejei. Mas não me estava a sentir tão bem quanto esperava. Estava com medo. Não podia aguentar mais. Tinha de contar finalmente à Matilde.
  Fui à minha página do Facebook e ao ver a marca verde ao lado da sua fotografia, o meu coração apressou-se. Já lhe devia ter contado mas… nunca tinha surgido o momento certo.
  Simão: Olá! Precisava mesmo de falar contigo. Estou a incomodar?
  Matilde: Sabes que aqui são cinco e meia da manhã certo? Mas sim diz o que queres dizer.
  Simão: Eu sei que já devia ter dito isto há algum tempo mas ainda não tinha surgido o momento. Desde que me rejeitaste que eu decidi criar um teorema que me pudesse trazer felicidade. Que pudesse preencher um vazio. Algo que me garantisse um futuro sem preocupações até ao resto da vida.
  Matilde: E…???
  Simão: E tentei criar algo que previsse a chave do euro milhões. Nunca pensei verdadeiramente que iria conseguir, mas na verdade consegui. Não sei o que fazer estou um pouco assustado.
  Matilde: Uou! Mas… espera! Isso não é ilegal? Se tu usares isso vai ser considerado batota!
  Simão: Sim mas pensa naquilo que eu posso conseguir. Pensa no reconhecimento que me vão dar! Finalmente vão ver algo em mim.
  Matilde: Simão, tu e todos sabem que tu és provavelmente o rapaz mais inteligente que alguma vez algum de nós conheceu. Não é à toa que a tua média é de 20. Mas tu não podes aproveitar-te de algo ilegal para te fazeres valer. Fico feliz por teres conseguido e isso só prova que tu és realmente um génio. Não te posso obrigar a não usares mas não posso concordar se o fizeres porque não estás a querer reconhecimento pelos motivos certos.
  Simão: Lá está as pessoas vêem-me como o excelente aluno que tira vinte a tudo e eu quero ser mais que isso.
  Matilde: Estou cansada e cheia de sono. Vou dormir e aconselho-te a fazer o mesmo. Pode ser que o sono te sirva para acalmar as ideias.
  (Matilde ficou offline)
  Fui-me deitar porque apesar de ainda ser cedo em Portugal. Estava a sentir-me cansado e não estava a dar nenhum programa suficientemente bom para me manter na sala.
  Muitas dúvidas pareciam invadir a minha cabeça. Estaria a Matilde correta? Talvez ela estivesse! Nunca pensara nisso anteriormente mas na realidade eu nunca pensei sequer que o que eu estava a fazer não era sequer legal. Além disso o que faria eu com tanto poder? O que faria eu com tanto dinheiro? Estaria eu preparado para tudo isso?
  Na manhã seguinte acordei. Olhei-me ao espelho e senti um tremor.
  Apesar de ainda querer achar que não sabia o que fazer, a minha cabeça e o meu coração já se tinham reunido em segredo e já tinham tomado uma decisão. Apesar de o meu teorema ter um grande valor monetário não o poderia usar. Mas não seria mais fácil descobrir o sucesso da forma mais convencional? Iriam haver muitos mais momentos para eu poder mostrar as minhas capacidades e eu deveria ter percebido desde o início que aquilo que estava a fazer não era correto.
  Nunca iria conseguir lidar com tanto poder. Se nem tomar conta dos meus peixes sem os deixar morrer eu era capaz, quanto mais lidar com tanto dinheiro. A minha decisão estava tomada. Não iria usufruir da minha descoberta. O seu propósito inicial sempre fora um motivo para a Matilde se apaixonar por mim e agora consigo ver o quão imaturo isso foi. Não era com dinheiro que eu a ia impressionar. Eu conquistei a Matilde sendo eu mesmo, não me deixando modelar pelos padrões que a sociedade julga importantes.
  Muitos podem achar a minha decisão estúpida mas eu já tenho tudo o que preciso para viver uma boa vida. Tenho um pai que me adora, o melhor amigo que alguém pode ter e uma namorada que eu sempre adorei.
  Ninguém sabe como poderia ser o meu futuro se usufruísse do poder do teorema, talvez daqui a uns anos possa criar um teorema que me faça descobrir mas para já sou uma pessoa feliz e prefiro ver qual será o meu futuro não tento usufruído do poder que tinha nas mãos.
  O teorema não foi destruído. Está simplesmente guardado num local suficientemente seguro para que mais ninguém tenha conhecimento dele.
  Por fim, só espero que um dia venha a ser reconhecido sem infringir nenhuma regra de algum jogo e que em vez de a minha inteligência ser usada para fins materialistas e meramente egoístas, seja usada para o bem das pessoas. Quem sabe se não sou eu a encontrar a cura de uma doença dizimadora ou até encontrar a solução matemática para a recuperação da banca mas para já o meu teorema é demasiado valioso para as pessoas tirarem proveito dele. Mas garanto que irão ouvir falar mais de mim daqui a uns anos.
                                                                                                                                                                                  
Margarida Costa Pereira, n.º 19, 11.º B, Agrupamento de Escolas de Anadia

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