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segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Ruta Inti «El renacer del sol»


Apresentando-me, chamo-me David Pires, tenho 19 anos e, embora viva em Águeda, estudei sempre em Anadia. Depois do divórcio dos meus pais a minha infância e adolescência ganharam contornos atribulados. Mudei inúmeras vezes de local de residência e no auge da rebeldia da puberdade acabei por chumbar no meu 7.º ano. Após este ponto de viragem, que só viria a concretizar-se totalmente no início do 9.º ano, deu-se uma transformação radical a que talvez possa chamar uma vitória tanto pessoal como dos meus professores que viram algum potencial e não me abandonaram como mais um caso perdido do nosso sistema de ensino. A partir daí tornei-me num aluno esmerado e foi-me restituída a curiosidade e a sede de conhecimento que há muito me parecia ter abandonado. Iniciei o Secundário no Curso de Línguas e Humanidades e desde cedo destaquei-me pelo bom desempenho nas várias disciplinas e pela necessidade de ir sempre um pouco mais além do que os meus colegas. A par do sucesso escolar procurei sempre desenvolver outros interesses, nomeadamente no campo da escrita.
Como leitor incansável e amante do cinema, cedo nasceu uma sede por viajar que aos 17 anos se concretizou na primeira pequena viagem sozinho à Alemanha, França e Luxemburgo.
Nesse momento descobri uma paixão que me perseguiria até hoje.
Creio que como prova e consequência da forma como, ao longo do secundário, me destaquei dos restantes alunos é o facto de que a oportunidade nos foi apresentada, mas apenas eu decidi agarrá-la. A primeira referência a este projeto surge no manual escolar de espanhol e depois de alguma pesquisa encontrei o projeto RUTA INTI e soube que poderia contar com o apoio da minha professora de espanhol, Nelly Moreira. De seguida, tratei dos formulários, da documentação e claro dos trabalhos necessários para seleção. Tendo sido todo o processo exclusivamente em espanhol, redigi uma composição, “Los siete mandmientos del viajero”, escrevi algumas cartas de motivação e fiz uma entrevista online perante o júri da organização. Passadas duas semanas de ansiosa espera, as listas dos expedicionários admitidos foram lançadas e com elas descobri que seria não só o mais jovem, mas também o único português. Após esta notícia iniciei os preparativos e recebi ajuda de várias entidades no custeamento de algumas despesas inerentes à viagem que a organização não poderia garantir. No entanto, somente quando aterrei em La Paz, no dia 29 de Junho, é que me consciencializei plenamente que iria viver aquela aventura.
É sempre complicado resumir, ou mesmo colocar por palavras, experiências como estas. Há sempre algo que fica por mencionar e aquilo que é mencionado fica sempre de certa forma aquém do que realmente foi.
O ponto de partida foi na capital da Bolívia, no sopé da cordilheira gelada dos Andes e o ponto de chegada seria em Iquitos nas entranhas da Amazónia peruana. Vários pontos de passagem incluíram Machu Picchu, Trujillo, lago Titicaca, Cusco e muitos outros.
Entre atividades radicais e desafios físicos e emocionais intensos pude conhecer grande parte do património civilizacional do Império Inca e ainda várias tribos indígenas e os desafios que enfrentam num mundo que lhes é, ainda em muitos aspetos, hostil. Para além de física e emocionalmente exigente, o desafio foi também cultural e linguístico dado que era o único expedicionário português e o mais jovem. Acredito que tudo isto somado foi a equação perfeita para uma experiência intensa, sobretudo emocional e psicológica. Por um lado, a exaustão e, por vezes, o isolamento fizeram-me sentir muitas vezes uma melancolia que me levou ao ponto de contar os dias que faltavam para regressar a Portugal. Por outro lado, foram muitos os momentos que me permitiram uma euforia inaudita no meu espetro emocional e um sentimento de realização após fazer uma caminhada de 7 horas com mochilas pesadas, enfrentando hostes de mosquitos e chuvas equatoriais, a título de exemplo, ou de sobreviver a uma semana a comer apenas arroz cozido com ovos numa fogueira que lhe conferia um sabor omnipresente a lenha queimada e a bordo numa jangada suspeita no Amazonas. Entre leopardos, picadas de mosquitos, mergulhos em águas turvas, caminhadas nocturnas pela floresta, traças que me cobriam a face, tempestades tropicais, jejuns e golos de água, que por vezes pareciam uma roleta russa de um rol assustador de doenças, posso dizer que foi desafiante.
Em síntese, este mês ainda desperta memórias e sentimentos contraditórios que à medida que o tempo passa vão privilegiando o melhor da experiência e apagando o pior. No entanto, descreveria o que sinto como uma nostalgia agridoce.
Para além das várias amizades que criei com pessoas de vários pontos do mundo, como o México, Espanha ou Hungria, e das memórias queridas que pude construir com elas trouxe também novas perspectivas e uma nova forma de viver o meu quotidiano rotineiro em nada semelhante ao mês épico que havia vivido. Um mês a viver e a viajar por dois dos países mais martirizados da América do Sul ensinaram-me a relativizar o conforto e a não tomar por garantido aquilo a que devia estar grato por poder ter, coisas simples como água potável.
Não sou ignorante ou arrogante ao ponto de riscar o Peru e a Bolívia da minha lista de países a visitar, sei claramente que ficou muito por conhecer e explorar. No entanto, o mundo é grande e em certa medida infinito quando comparado com a efemeridade das nossas vidas. Utopicamente, viajaria a todos os lugares que quero conhecer presencialmente, ignorando quaisquer limitações temporais e financeiras. Contudo terei que investir todas as oportunidades que me surjam em experiências pioneiras na minha vida. Mas quem sabe? Não me atrevo a dizer nunca.
Sentindo que para além dos estudos e das avaliações inerentes ao último ano de secundário me restava imenso tempo livre senti que o tinha de preencher com algo, digamos, “fora da caixa”. Inicialmente, ocupei-me com leituras de Aldous Huxley, Anthony Bourdain, John Steinbeck, entre outros. Mas em fevereiro surge inesperadamente a oportunidade do Serviço de Voluntariado Europeu. Eu já era familiarizado com a organização e com a natureza dos projectos do programa ERASMUS+ mas nunca tinha tencionado candidatar-me a meio do meu Secundário. No entanto, como recusar um mês na Turquia com 25 voluntários de um pouco de toda a Europa e com as despesas todas financiadas pela União Europeia?
Tendo como pilares principais a sensibilização ambiental e a Land Art, o projeto foi pretexto para um rico intercâmbio cultural fértil em amizades e experiências únicas. Desde limpeza de praias a ações de sensibilização junto dos locais, a iniciativa excedeu os seus propósitos iniciais e abrangeu efemérides como o Dia Internacional da Síndrome de Down e problemáticas como a crise do plástico descartável.
Depois de várias viagens e experiências a nível internacional, devo confessar que nunca tinha sido tão difícil regressar a Portugal e que o mês que havia passado tinha sido, indubitavelmente, o melhor mês da minha vida. Principalmente pelas amizades que fiz e pelo espírito de comunidade que criámos.
Motivado pelos meus professores e colegas na Escola Básica e Secundária de Anadia fui levado a partilhar estas aventuras primeiro como um testemunho pessoal, íntimo e improvisado apenas à minha turma. Depois, preparei algumas apresentações onde partilhei estas experiências com várias turmas de secundário. A partilha era em si mesma um fim e, mas, também um meio. Por um lado, desejava melhorar as minhas capacidades comunicativas e descritivas e por outro queria usar as minhas histórias como forma de levar os meus colegas a iniciar as suas próprias aventuras e os seus próprios caminhos naquilo que por vezes lhes sujeita interesse, mas que frequentemente é reprimido pela natureza da rotina estudantil ou por receios e inseguranças.
Relativamente ao feedback, fiquei extremamente admirado com a resseção das minhas apresentações. Felizmente contei sempre com ouvintes entusiasmados e atentos ao que lhes narrava. A minha surpresa surge do facto de achar que há uma certa desmotivação e indiferença, de certo modo superficialmente niilista, por parte da juventude face à possibilidade de fugir a um sistema de ensino que em muitos casos os drena de vontade ou energia para perseguirem outras aspirações e que por vezes até encontra orgulho em não querer saber de nada ou negligenciar o seu desenvolvimento intelectual como forma de protesto individual. Atenção, não pretendo generalizar nem a justeza do sistema educativo nacional ou a natureza dos jovens pois também acredito que é possível atingir sucesso escolar e promover a nossa educação para além das paredes das escolas noutros trilhos traçados independente e originalmente.
Questões acerca do meu futuro deixam-me sempre com um temor existencialista digno de uma personagem de um livro de Sartre ou Camus. Devido a múltiplos interesses, sonhos e planos é sempre difícil comprometer-me definidamente com algo específico, no entanto o período pós-secundário que segue ao fim dos exames nacionais abre um mar de questões que me exigem decisões delimitadas, sucintas e seguras.
Considerei Sociologia, ponderei Antropologia, refleti acerca de História e Literatura, o Inglês era também uma alternativa. Queria conciliar algo como ser escritor, trabalhar na National Geographic ou ser professor com qualquer decisão que tomasse.
Depois de tanta indecisão e de passar por fases de uma terrível indefinição e insegurança acabei por chegar ao ponto onde me encontro neste momento, entre estudar Línguas e Relações Internacionais na Universidade do Porto ou em Inglaterra na universidade de Portsmouth. Contrariamente ao que se poderia deduzir do meu percurso nos últimos anos, o mais provável é permanecer em Portugal. Dentro de 2 dias partirei para Itália onde ficarei por duas semanas em casa de um amigo que o projecto na Turquia me presenteou. Enquanto lá, as notas dos exames sairão e será em Itália que terei de fazer a derradeira decisão que influenciará os três anos que tenho pela frente.
David Pires, 12.º Ano, EBSA
08/07/2019

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