6º Episódio
Hoje já adulta, e passados
cerca de dez anos, relembro todos esses dias e vejo como, em alguns minutos, a
minha vida se alterou, como eu mudei e como tentei que tudo fosse bem
diferente. Ainda relativamente a esse incidente, noutra altura teria ficado
apavorada, teria pensado que era a culpada, que tudo acontecera por minha
causa. Mas, não! A nova Ana não era assim. Sabia que não tinha provocado nada.
Sabia que, embora fruto da violência de dois colegas, o acidente da Sara tinha
sido involuntário. Bem, mais ou menos. O Roberto pretendia agredir-me. Isso era
uma certeza. Se eu não me tivesse afastado, para ir buscar o Pedro, era eu que
talvez estivesse no lugar da Sara.
Inicialmente a polícia
falou comigo, com o Pedro e com a Sara e depois com o Roberto, porque ele andou
alguns dias fugido. Porém, acabou por ser detido e o tribunal atribuiu-lhe uns
meses de serviço cívico como pena dos seus atos. Ainda hoje ele tem problemas
com a justiça.
A Sara recuperou bem e
deixou cair a sua máscara de menina arrogante e má e o que eu hoje sou, naquilo
que me tornei, devo-o também a ela.
Quando a Sara regressou ao
liceu, eu não me atrevi a ir ter com ela. Não, já não a temia. Mas não queria
impor a minha presença. Pensei que isso poderia não ser bem aceite por ela.
Momentos depois, almoçava
na cantina, com a minha amiga Selene. Então, Sara aproximou-se da nossa mesa e
perguntou-nos se podia almoçar ao pé de nós.
– Claro! - dissemos em
uníssono.
Sara mantinha o rosto
escondido pelo lindo chapéu que compunha a toilete desse dia. Apercebi-me que
ela, apesar de fisicamente recomposta, se sentia inquieta. Decidi, por isso,
falar-lhe:
- Voltaste finalmente à
escola!
- Vim aqui, ter contigo,
para te pedir desculpa.
Selene, sempre amiga mas
justa, decidiu interferir.
– Achas que um simples pedido de desculpas resolve
tudo? Achas que quase doze anos de tortura, de maldade se apagam com um simples
“desculpa”?
Ela baixou a cabeça, mas
espreitou por entre o entrelaçado do seu chapéu de palha e falou mais para mim,
não respondendo à provocação de Selene:
– Por favor, escuta-me! Sabes, estou muito
arrependida por tudo o que te tenho feito. Eu sabia que não era correto, mas
sempre me soube bem espezinhar-te. Foste sempre um alvo fácil de mais. Primeiro,
eu fui habituada a ter tudo. Por outro lado, sabia que tu vinhas de uma família
pobre. Portanto, naquele momento, para mim, eras um ser inferior. Não, não te
sintas mal. Não é o que sinto agora. Mas deixa-me continuar. Preciso que me
oiças até ao fim.
Ficara sem palavras. Não
sabia o que havia de dizer, por isso, acedi com um simples acenar da cabeça.
- Eu fui uma menina
mimada. Não penses que os meus pais me educaram assim. Não! Eles são as pessoas
mais doces que tu possas imaginar. São gentis e ensinaram-me que eu devia
respeitar os outros. Coisa que eu nunca fiz. Mimam-me, é certo, mas tentam
transmitir-me bons princípios.
Eu e a Selene olhámo-nos,
mas voltámos a fixar-nos nas palavras de Sara:
- Sempre quis ser boa em
algo. Bem, escolhi o pior. Realmente sou a melhor. A melhor entre os piores!
Consegui aquilo que queria: aterrorizei diariamente miúdos, insultei, promovi a
violência e arrastei muitos comigo. Uns, porque eram como eu. Outros, porque me
temiam. O que eu queria era exercer o meu poder sobre aqueles, que considerava
mais fracos e vê-los a arrastarem-se humilhados. Não imaginam a grandeza que
era. Mas agora reconheço que era pura cobardia.
Dito isto, pegou-me nas
mãos e olhou para mim com os seus olhos que pareciam não o belo céu azul que
outrora vira, mas um manto de escuras nuvens. Agora, eu via neles um misto de vergonha
e de tristeza. Senti que queria continuar, mas que lhe faltavam as palavras.
Conseguiu, por fim,
articular a palavra:
- Desculpa! - dizendo isto,
desatou a chorar, tapando o belo rosto martirizado com as mãos.
Selene e eu estávamos sem
palavras. O que acabáramos de ouvir era uma confissão que jamais pensáramos
escutar. Olhei para Selene e vi nela exatamente aquilo que eu sentia: Sara
reduzia-se a uma insignificância que me apanhou completamente desprevenida. Não
conseguíamos ver nela a pessoa que tinha sido. O seu ar altivo e insolente
tinha desaparecido, para dar lugar a uma pessoa…, isso mesmo, a uma pessoa!
Foi o início de uma
amizade que perdura até hoje e que irá durar para sempre.
Como o ano já quase se
despedia e os exames estavam à porta, decidimos ajudar a Sara a obter melhor
resultados para entrar na faculdade.
Continua…
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