Naquele lugar, remoto e tradicional, onde sempre
chovia, ninguém era feliz. Os seus habitantes deambulavam pelas ruas, aos
encontrões sem se importarem com ninguém. Cada um estava preocupado com a sua
própria infelicidade. Nele não havia quem dormisse, as insónias assolavam a
população ao extremo; mal se comia e, apesar das belas frutas e vegetais que a
terra oferecia, a vontade de os ingerir era pouca.
Um dia, em vez de chuva, o lugar foi abençoado
pelos céus com um único e suave raio de sol.
Aquele belo louro
que passava pelo mesmo passadiço que o dia anterior, parou, endireitou-se e
olhou para o leve raio amarelo que descia à planície. Quem era ele? Nem ele
sabia. Não sabia nada de si, para além do seu nome e da tristeza que o
completava. Levou a mão aos olhos de forma a resguardá-los de tanta luz, não
estava habituado. Por entre os seus longos e magros dedos vislumbrava um mundo
brilhante. Onde estava? Desobstruiu por completo a sua visão e viu. Viu um
mundo diferente do seu, o cinzento escuro e o preto que antes o rodeavam eram
agora uma pequena mancha no imenso cardápio de cores que presenciava. As
janelas refletiam cores claras e tranquilas e brilhos de existências não
presentes; os restos de chuva nas beiras das estradas brilhavam e, agora, até
as suas ondulações transmitiam calma; os prédios que o apertavam eram cinzentos
claros, mas mesmo assim, pareciam perfeitos para se viver. Não tinha palavras
para descrever o seu estado de espanto, mas sentia as suas bochechas quentes e
já não sabia se era do seu próprio corpo, se do raio de sol. E, subitamente
chorou, chorou com todas as suas forças, agachado naquele chão ainda húmido, e
deixou que um sorriso lhe rasgasse o rosto.
Talvez estivesse feliz. Quando se sentiu recomposto, limpou a face e ao olhar
para cima, perguntou:
- Tu, quem és
tu que me permites saborear a beleza da felicidade?
Ninguém lhe
respondeu. Mas, perante si, estava agora um homem alto de cabelos castanhos
escuros, sentado na sua cama, com uma expressão serena e um tímido sorriso.
Ficou enfeitiçado. Era um ser magnífico e só a sua presença o fazia querer
explodir do misto de sensações que o invadiam. Não sabia o que era, não sabia o
que queria, não sabia nada, mas estava feliz. Sorria e parecia que não existia
nada que conseguisse destruir o deleite da sua alma. Mirou as suas mãos e
respirou fundo e, escondendo o seu rosto, suspirou.
- Oh, belo
ser que me fascina…
Ao abrir
novamente os olhos, não havia nada além de branco. Tudo era branco, as paredes,
a porta, a pequena cama, o teto e até o chão. Mas havia algo de cor intensa.
Por baixo de si estava uma poça vermelha crescente. Voltou a olhar para a
frente, quando a sua mente se apagou e sentiu o frio tomar conta de si…
Viu-se preso,
emaranhado num profundo novelo de lã vermelho. O seu pescoço estava apertado
com uma fita vermelha clara que se estendia por aquela imensidão. Decidiu
caminhar. Andou até as suas pernas lhe doerem, mas não sabia quanto tempo
passara, nem sequer se se havia deslocado. Pensou em olhar para trás e fê-lo.
Ao virar-se, novamente, reparou nas costas
nuas de alguém e calmamente, observou,
cativado, que a fita vermelha terminava nos
pulsos do outro. Ergueu lentamente a mão esquerda e acariciou aquela pele clara
com saudade, levando a outra mão aos escuros cabelos castanhos.
Estrondosamente, um grito fez-se ecoar. Quem seria? Abraçou a alma queda diante
de si, sentiu-a quente, sentiu-a fria, sentiu-a enlouquecer, sentiu-a relaxada,
sentiu-a em si, na sua plenitude.
- Oh, belo
ser que me prende… Eu amo-te! Amo-te!
Afogou a sua
cabeça entre as omoplatas do outro e fechou intensamente os olhos, envolto nos
ossos acolhedores e tentadores. Agora, sentia frio.
Levantou a
cabeça e viu-se, refletido num espelho. Tinha belas pérolas jade -ou seriam
olhos? Olhava-se, ouvia-se e entendia-se naquele ruidoso silêncio que se
formara. Um grito ecoou ao longe. Virou-se,
assustado, e quando se voltou novamente para o espelho, este estava fendido. Do
seu reflexo, jorravam lágrimas, mas de si não, e no canto lá estava ele, aquele
outro ser de cabelos castanhos escuros. Olhou para trás, ninguém, só vazio.
Então, fechou os olhos e sentou-se na sua cama.
Começou a
sentir algo em si: sentia carícias ofegantes distribuídas por mãos quentes. Um
gemido fez-se ouvir. Diante de si tinha o olhar expectante de um corpo
necessitado. Embrenhava-se no seu olfato a luxúria e o prazer daqueles corpos
calorosos. Acariciou os cabelos escuros do outro e beijou-o apaixonadamente,
rasgando-lhe o braço esquerdo que segurava com uma mão, o tronco com a outra e
a sua boca comeu-lhe os lábios e língua. Agora já ao seu lado, jazia um corpo
sem vida. Que teria feito ele? Era e não era isto que pretendia. Olhou
fixamente para ele, tocando a sua pele com amor. Aquela pele de porcelana que o chamava. Abraçou-o.
- Diz-me, que
conseguirás tu fazer assim, perdido em mim?
Levantou-se e
dirigiu-se ao espelho. Atrás de si estava o outro, sentado a sorrir. Decidido,
atirou a sua cabeça ao vidro e não sentiu mais nada a não ser o chão.
Nessa noite,
teve um belo sonho. Sonhou que se estava a afogar, acabado de ser violentamente
atirado dos céus para o mar. A sua visão estava turva, mas ainda dava para
perceber que à medida que entrava nas profundezas do mar, ele se ia tornando
encarnado, e corpos sossegados iam aparecendo ao seu lado. Antes que pudesse
fechar os olhos e entregar-se, viu uma grande mão abrindo caminho até si,
agarrando o seu corpo e abraçando-o. Era tão quente que se sentiu embalado.
Fechou os olhos e respirou o perfume doce e delicado daquela mão… Sem saber
como, estava já deitado ao lado do belo de cabelos castanhos escuros. As
cortinas dançavam ao sabor do vento soão, daquela noite sossegada e as estrelas
brilhavam encantadas.
Chorava,
chorava intensamente, chorava com alma, chorava até nada ser. Que sensação
vazia, que sensação fria, que indesejada sensação conhecida.
- Mais uma
vez, por ti sou preenchido e por ti sou abandonado…
O aperto no
seu peito era quente mas o seu coração dançava agitadamente. Aquela música,
oh!, a música dentro se si, levava-o ao apogeu. Deixava-o incompletamente
completo. Ele não sabia o que ouvia, era uma mistura, tudo era uma mistura, ou
tudo ou nada ou tudo e nada. Ah, o grito que queria lançar aos céus! Nu,
despido de tudo, de qualquer coisa e de nada. Que confusão avassaladora. Não
haveria mais nada para além disto? Que melancólica mas tentadora rotina. Não o
largava, possuía-o, abanava-o, preenchia-o, cortava-o, mas acompanhava-o.
Descontrolado,
riu, atingido por um delírio repentino, sempre com a mão direita a arranhar e
apertar o peito. Riu-se histericamente.
De repente a
sua gargalhada extravagante cessou. Ainda de cabeça erguida, mirou intensamente
o teto, inspirou pesadamente e libertou-se. O seu grito foi tão intenso que
estremeceu a cidade inteira. Salgadas lágrimas acompanhavam a dolorosa melodia
composta por si. Foi tão profundo que o seu corpo desabou no chão gélido do seu
quarto. Estava cansado, tão cansado e vazio, tão vazio. Não pensava nem sentia
mais nada. Estava livre, pelo menos, temporariamente. Portanto, deitou-se e adormeceu.
Mãos. Mãos
quentes e petulantes acariciavam os seus belos cabelos louros. Abriu os olhos
para a belíssima e pacífica presença do de cabelos castanhos escuros.
Apreciou-o calmamente com o olhar, transmitindo-lhe pensamentos, que o outro
astuciosamente compreendeu, e tornou a fechar os olhos, saboreando aquele
carinho.
- Por favor,
fica comigo para sempre…
Subitamente,
algo mudou. Em vez de carícias, os seus cabelos eram fortemente puxados.
Porquê? Apavorado, abriu os olhos: estava sozinho. Não existia nada à sua
volta. Estava num lugar desolado que só ele preenchia.
Tinha fortes dores de cabeça, talvez causadas pelos puxões de cabelo que
recebeu de ninguém ou talvez pelo ruído silencioso que se fazia ouvir na sua
cabeça. Levantou-se e procurou algo mais. Atrás de si, estava uma porta de
madeira castanha. Abriu-a e, do outro lado, estava o céu. Por baixo de si não
havia chão e a sua vista não tinha fim. Não pensou demais e deixou-se cair. Não
sabia o porquê, simplesmente fez. Ah, não havia alguém para o salvar?
Delírios
tomaram conta da sua mente. Um efeito irreal tentava adulterar as formas: as
pessoas que esticavam e encolhiam, o chão ondulante, os sorrisos por coisas
nenhumas estampadas nas faces deles, os olhos assustados e os olhos divertidos,
nos seus corpos lentos. Ele já não sabia o que via nem o que não via, mas era
belo, talvez até poético. Desatando às gargalhadas, olhou para o seu amado,
olhou para outra pessoa, e olhou para outra criatura, sem mais nada distinguir.
Todos o fitavam com estranheza e julgavam-no, ele ouvia-o no silêncio que
faziam. No entanto, o seu mais precioso chorava e tentava acalmá-lo. Nervoso?
Maluco? Pena? Porquê? Sentia-se tão bem e livre, com aquela gargalhada sem
razão e tudo o que a originou e o que ela implicava. Ah, mas que demência, que
loucura que ele sentia com todo o seu ser! Olhou para as mãos medrosas que lhe
agarravam o braço e decidiu acudir à preocupação do seu companheiro, para si
sem sentido. Pegou na sua mão e ainda com um sorriso dançante limpou-lhe as
lágrimas.
- Diz-me, e
se eu tivesse os teus olhos, o que veria eu?
Ao olhar
novamente para a multidão, ela já não existia e o local era diferente. Fitou os
seus braços, mas o de cabelos castanhos escuros não estava entre eles, mas sim
à sua frente, com um sorriso que ao louro transparecia cansaço. Ou pelo menos,
ele pensava que o via. Mas é normal estar desgastado, também ele se queria
livrar de si. Inesperadamente, foi tomado por tragédias e tristezas mais que
tristes e deixou-se cair. Como se lhe lê-se os pensamentos, o outro
pronunciou-se:
- Eu não
estou cansado meu amor, eu não me vou cansar de ti.
Blasfémia!
Mentira, era mentira, era tudo mentira! Levou as mãos à cabeça tapando os
ouvidos, desnorteado, e chorando apavorado. Parecia querer não ouvir as doces
palavras e querer convencer-se a si próprio que era mentira. Amava-o tanto mas
estava tão assustado. Tinha medo, tinha tanto medo. Um medo avassalador. E mais
uma vez:
- Não, meu
doce, não tenhas medo. Eu amo-te.
E parou,
bruscamente. Ah, o amor, sim, amor. Oh, mas o que é o amor? Porque é que o seu
tom era sempre calmo? Porque é que soava sempre seguro? Olhou para ele, os seus
lábios sempre sorridentes. Tinha medo de ser abandonado, e se ele fugisse? Mas
ele amava-o, ele disse-o. E em si crescia a dúvida: também ele te vai deixar, o
amor não existe. Silêncio! Ele é quem eu tanto amo, não há mentiras. Mas e se
ele não conseguir recompor os fragmentos do meu ser? E se eu o destruir?
Preciso de o proteger. Estava tão absorto nos seus pensamentos que não reparou
nas mãos macias do outro, que lentamente, foram de encontro aos seus cabelos
louros e com um leve gesto, juntou os seus lábios.
Estava
despido. À sua volta, tudo tinha cor, cores vivas e inebriantes. Já ele, se
tornara cinzento, e, como se nunca antes tivesse visto cor, estava fascinado.
Mas também estava angustiado: porque é que ele não tinha cor? Sentia-se frio e
vazio. Num momento de desespero, tocou em tudo o que conseguia, desejando
embrenhar-se nos tons que o fascinavam. Em vez disso, tudo deixava de ter
sentido como ele, porquê?
Ouviu passos,
aproximava-se o de cabelos castanhos escuros. Os seus dedos finos tocaram nas
falhas e elas voltaram a ser coloridas. Os olhos do sem-cor brilhavam num misto
de encanto e lágrimas. E, de joelhos no chão e olhos que imploravam por
salvação, foi abraçado pelo outro ser sorridente. Maravilhado, sentiu-se
quente, tanto que as suas lágrimas secaram, e pequenas manchas de cor foram
aparecendo por todo o seu corpo. Fora possuído por ondas de entusiasmo e
alegria com um único e simples ato. Era pura felicidade que lhe aquecia a alma,
que o preenchia por completo. Apesar de ainda existirem falhas em si,
respirava, estava feliz, era amado, estava salvo.
Chorava tanto
e doía tanto, amava-o, amava-o e amava-o ainda mais. O de cabelos castanhos não
sabia o que fazer e abraçou-o, murmurando calmas e amores. Mas ele estava
magoado, era demasiado para si, era imensamente forte aquele amor destruidor
que o preenchia, aquele sentimento esmagador e pesado que lhe fazia perder o
equilíbrio, que o fazia rir, chorar, e sentir-se vivo. Vivo, ele estava vivo.
Sentia e respirava. E enquanto ser vivo, tudo era tão intenso, tudo era tão
grande demais para o seu corpo. Eram muitos sentimentos, muitos pensamentos.
Ele queria tudo e nada, nada e tudo. Uma única pessoa revolucionara a sua
existência.
Certo dia,
aquele belo homem de cabelos castanhos escuros morrera, e o outro belo homem
louro chorara. Chorara tanto que se acredita que foi assim que nasceram os
oceanos e que nas suas profundezas jaz o seu corpo, eternamente abraçado ao do
amante.
FIM
Nádia Cristina Miranda Bernardo, 12.º F | Escola
Básica e Secundária de Anadia
Parabéns, Nádia, pelo 1.º lugar alcançado!
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