5º e último Episódio
Todos os anos, cada chegada era uma festa, em que os foguetes troavam na
minha cabeça, iluminando o meu sorriso. Mas cada partida parecia uma morte
anunciada, um pouco de mim que ficava e um grande pedaço que se partia ao abalar
para longe daqueles que amava.
Os anos passaram, os netos cresceram, casaram e o meu mais antigo sonho
manteve-se oculto, preso no meu mais íntimo ser. Mas, permaneceu sempre ativo,
tal vulcão em ebulição.
Aos setenta e cinco anos, bati com a mão na mesa e disse ao meu marido
que o tempo passado em França já tinha chegado ao limite. Tinha chegado assim a
hora de regressar definitivamente a Portugal. Para minha grande alegria até já
tinha uma bisneta, filha do meu neto mais velho, que fazia seis anos em julho e
em setembro, iria para o primeiro ano. Eu queria assim acompanhar o seu
crescimento.
Finalmente, regressei!
O meu neto e a esposa tinham de trabalhar até tarde, pelo que a minha
nora ia buscar a neta à escola e vinha sempre buscar-me para ficarmos as três
em casa dela.
Num belo dia, o verão despedia-se com um resplandecente sol e Inês, assim
se chamava a minha bisneta, presenteou-me com a mais bela das perguntas:
- Vó Ná, - como me chamava, - o papá disse-me que, quando era pequeno,
queria ensinar-te a escrever, mas que tu estavas muito longe. Agora que estás cá,
sou eu quem te vai ensinar!
Não era possível. Ali estava eu, passados mais de setenta anos, a ter a
oportunidade que me negaram, quando era uma criança. Mas só que agora era
tarde. Eu estava velha para aprender. Sentia-me cansada, esgotada. A vida não
me tinha sido nada fácil. Não conseguiria pegar numa caneta e escrever. Nunca
iria pegar num livro e ler as bonitas palavras que ele transporta. Nunca iria
ser capaz! Não, era impossível!
Inês olhou-me nos olhos e sei que viu neles a minha incapacidade e a minha
desilusão.
Eu não consegui enfrentar a minha bisneta. Mas ela chamou-me baixinho.
Levantei os meus olhos e encarei-a com um ténue sorriso. Como era capaz de dececionar
esta inocente criança que me olhava com aquela certeza e esperança?! Como podia
eu desiludi-la?!
De repente, exclamei:
- Sim, claro que me ensinas e
claro que vou aprender!
Fiquei surpresa com as minhas
próprias palavras e, embora saídas nem sei bem de onde, foram minhas e iria
honrá-las.
- Sabes, Vó Ná, basta que faças aquilo que eu faço na escola. Conheces as
vogais, não é? Todos as sabem. Agora, basta começares a escrever. Hoje aprendi
a primeira, aprendi a fazer o “i” e é essa que vais aprender.
E eu que pensava que a primeira letra era o “a”. Afinal, precisava mesmo
de aprender do início.
A minha nora, por sua vez, ofereceu-me uma elegante pasta de cabedal
castanha com o meu nome bordado e lá dentro estavam os cadernos e o estojo com
tudo o que era necessário para eu escrever. Agora, já não havia a lousa nem o
giz, mas também não era importante, estes eram novos e meus. E eu voltei a ser
criança outra vez!
Dediquei-me de alma e de coração a aprender a escrever as letras, depois
a formar as sílabas. Aprendi os ditongos, as palavras, as frases e consegui
redigir o meu primeiro texto.
Hoje, faço oitenta anos e, sentada à mesa do meu jardim, tenho à minha
frente alguns textos que podem não ter o brilho dos grandes poetas, podem ter
erros na construção das suas frases, podem até conter um ou outro erro
ortográfico, mas são escritos pela minha mão. Esta mão calejada por uma vida
difícil de trabalho árduo, a quem foi negado aquilo que considero ser um bem
essencial. Esta mão que satisfeita faz deslizar a caneta, que dança em círculos
e em linhas direitas, desenhando as letras que eu escrevo para no final poder
ler estas palavras perfeitas, que a minha jovem professora me ensinou. Claro
que teve a ajuda da avó!
Hoje posso dizer: aprendi a ler e a escrever.
Já tão tarde?! Podem interrogar-se. Mas não! Eu agora sei que nunca é
tarde para aprender. Posso dizer que a expressão “Burro velho não aprende
línguas” não faz sentido.
Eu que sei falar português e francês, que percorri milhares de
quilómetros, que já fui sujeita a várias intervenções cirúrgicas e que já vivi
mais anos do que esperava viver. Eu, Nazareth, nascida entre as duas grandes
guerras, eu não sabia ler, nem escrever.
Posso dizer que a força de uma criança fez renascer em mim a criança que
estava escondida e que me deu o estímulo para aprender. Me deu aquilo que
outrora fora negado e que eu sei que tinha direito.
Devo tudo o que está nestas folhas aos meus dois netos, à sua mãe e à
minha bisneta que conseguiu concretizar o sonho da sua bisavó.
A minha crença transformou assim o meu sonho em realidade. Hoje, sou
completamente feliz, porque consegui concretizar o meu primeiro e último sonho.
Só me resta dizer que nunca é tarde para aprender!
Sofia Matos, nº 21, 8º Ano, Turma C
Brutal :)
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