Trabalho Infantil
A chuva caía numa manhã cinzenta e fria daquele inverno que se previa
tão rigoroso enquanto a agitação pairava no ar. Na rua ouvia-se, além do som da
chuva a bater naquela calçada bem portuguesa, o som de buzinas que sobressaía
por entre toda aquela confusão matinal. Lisboetas mal-humorados, mas
engravatados, conduziam carros potentes e elegantes por uma das mais
emblemáticas ruas da cidade, enquanto falavam ao telefone com ar altivo e
superior, mas talvez desculpando-se do atraso que teriam naquela manhã. Afinal,
era segunda-feira e conheceremos nós algum humilde mortal com um sorriso
estampado no rosto cansado neste dia da semana?
Ora, tudo isto era observado por Mia todas as manhãs. Neste caso, a uma
segunda-feira antes do pai chegar, escondia-se no pequeno armazém por trás da loja
e espreitava toda esta vida por ela desconhecida por detrás daquele vidro sujo
e minúsculo. A pequena ficava maravilhada com toda aquela vivacidade, gostava
especialmente de ver as crianças da sua idade brincar. Estas pulavam e gritavam
como passarinhos livres e despreocupados cuja sua única preocupação era ver se
vinha algum carro antes de atravessarem a estrada.
A menina, ao estar ali, sentia-se
longe da realidade, mas mesmo assim não se esquecia de ir olhando para o
relógio e pedir-lhe com jeitinho que parasse e a deixasse viver aquele sonho
durante mais algum tempo ou talvez para sempre, se não fosse pedir muito.
Entretanto, nessa manhã, Mia sentia-se distante, mais distante do que o
habitual e talvez tenha sido por isso que foi surpreendida enquanto admirava o
mundo que a rodeava. O pai, o seu próprio pai, um homem carrancudo, envelhecido
e barrigudo, cujos óculos quase lhe saltavam da ponta do nariz, entrou naquela
divisão e quando olhou em volta, viu a doce e frágil criança contemplando a janela.
Aí pareceu transformar-se num monstro, lançando um chorrilho de insultos,
ameaças e agressões em direção à pobre pequena. Esta recebeu-as como facas
afiadas que se cravavam nas feridas quase cicatrizadas. Mal isto acabou, a
pequena correu, pôs um sorriso no rosto como se nada se tivesse passado dentro
do sombrio armazém, tão sombrio quanto a alma do próprio pai e sentou-se no
banquinho, bem atrás do balcão e perto da máquina registadora.
De seguida, cumprimentou a D. Maria, cliente habitual daquele pequeno
minimercado e ajudou-a a fazer as compras da semana. No fim registou tudo e deu
o troco à pobre velhinha, não deixando transparecer a tristeza e a raiva que a
inquietavam por dentro.
Chegara o fim do dia, finalmente o inferno terminava, o que significava
que poderia trancar-se no quarto e brincar com a sua pequena e única boneca mas,
à medida que a noite avançava, significava também que o novo dia e tal pesadelo
voltava a estar cada vez mais próximo. Teria, pois, que ir para a pequena loja
do pai, trabalhar e no fim limpá-la de uma ponta à outra, deixando-a mais
brilhante do que um diamante e sem um único cabelo.
Esta pobre menina chorava todas as noites, enroscada na pequena manta
axadreza que uma das tias, que raramente vinha à cidade, lhe tinha dado e
lamentava-se da vida que levava e não percebia o porquê de tal “castigo”.
Não terá esta criança o direito de brincar como todas as outras? E por que
não pode fazê-lo?
É fundamental que toda a
sociedade se mobilize em prol destas crianças, quer seja através de protestos e
denúncias, quer seja através da solidariedade. Essa luta é nossa! Pode e deve
ser vencida!
Vamos,
então, juntos dizer: não ao trabalho
infantil!
Margarida
Carlota Lagoa, O Ciclista
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