Kaki, o pequeno lince
Kaki viveu toda a sua vida rodeado pela
natureza. O seu sonho, desde que era um pequeno lince, sempre foi ir ver a
grande cidade dos Homens.
Beth era a sua
melhor amiga. Beth era uma esquila já adulta, mas muito pequenina, como convém
a qualquer esquila, embora bem menor do que a maioria dos da sua espécie. Tinha
o pelo claro, castanho alaranjado, com uma manchinha branca no peito.
Beth, com o seu ar
maternal, sempre tivera a preocupação de alertar o seu querido amigo para os
perigos da cidade.
– Sabes, Kaki, a
cidade dos Homens é um sítio muito perigoso. Os seus prédios são altos e
monstruosos e há carros por todo o lado que deitam tanto fumo que poluem todo o
ar e os Homens, esses correm agitados de um lado para o outro e são para nós o
maior perigo.
Mas, enquanto Beth
falava do perigo, mais Kaki se fascinava por esse mundo desconhecido e
maravilhoso, pois ele apenas ouvia a parte da aventura e filtrava o alerta do
perigo como jovem que era.
- Kaki, não podes ir
para lá. Os Homens vão-te apanhar e prender-te numa jaula, ou até matar-te.
Sabes lá o que eles vão fazer? Como eles te vão tratar? Já te disse milhares de
vezes: é muito perigoso!
Kaki sabia que Beth
exagerava. Ela era pequenina e, por isso, tinha os seus medos. Mas ele era
grande e o medo não era um defeito dele. Portanto, a cidade e os
Homens não o assustavam. Como tal, ia fazer tudo o que era necessário para
conhecer a tão falada cidade dos Homens. Eles até que pareciam simpáticos,
quando os via ao longe a fazerem os seus passeios.
Chegou finalmente o
dia em que Kaki considerou que estava finalmente preparado para enfrentar a
grande cidade dos Homens. Contudo, não o quis fazer sem antes contar à sua
amiga:
- Beth, vou até à
cidade dos Homens e gostava que viesses comigo.
- Mas…
- Por favor… -
implorou com aqueles olhinhos verdes suplicantes de jovem irresistível. - eu
protejo-te, prometo-te!
- Está bem! Mas não
nos aproximamos muito.
- Combinado! -
exclamou Kaki, mais feliz do que alguma vez se sentira. – Sendo assim, amanhã
de manhã, bem cedinho, quando o sol estiver a nascer, partiremos.
Como precisavam de descansar, uma vez que
a viagem ainda era longa, foram-se deitar, pois precisavam de um bom descanso
noturno. Como combinado, mal o sol lançou os seus primeiros raios, eles
prepararam as suas trouxas e puseram-se a caminho.
Caminharam, caminharam vários quilómetros
até chegarem a uma estrada, onde havia alguns carros que passavam. Beth ficou
muito assustada, mas Kaki vibrava de excitação, não apenas pela novidade do
momento, mas pelo fascínio que estes tiveram sobre si. Queria vê-los de perto e
acercava-se perigosamente quando algum se aproximava, deliciando-se com as
buzinadelas que eles lhe lançavam, alertando-o para se afastar.
- Chega-te para a berma da estrada! -
ordenava Beth já em pânico, temendo pela vida do seu amiguinho. - Olha que é
perigoso!
Mas Kaki nada temia e o entusiasmo era tanto
que se aventurou ainda mais para o meio da estrada, não se apercebendo do real
perigo que corria. Beth, vendo os carros que velozmente se aproximavam e que
nada podiam fazer, ainda gritou:
- Kaki, não!
Contudo, era tarde demais. Já o seu amiguinho
estava estendido no chão e, pelo menos, uma das suas patinhas estava ferida.
- Kaki, Kaki. – gritou ela. – O que
fizeste?! Eu disse-te que era perigoso. Levanta-te.
Porém, ele não se mexia. Ela, então,
tentou pegar nele mas, pequenina como era, nada conseguia, pois ela era uma
simples esquila e ele era um lince. Na verdade, Kaki era muito maior que ela.
- Kaki, tu és forte, os carros continuam
a passar, é perigoso estarmos aqui. Levanta-te, vamos. Anda para a beira da
estrada.
Por fim, Kaki lá se levantou e, a custo,
arrastou-se para a berma. O tempo foi passando e os dois viam o seu sofrimento
a aumentar. Beth bem pedia ajuda. Mas ninguém a ouvia, ou via!
Finalmente, um carro parou. Mas Beth nem
sabia se havia de ficar contente ou aflita. E se fossem malfeitores e se a vida
dos dois terminasse ali?! Ou se os levassem para as tais jaulas? De repente, de
dentro do carro, saiu uma criança pequena, de cabelo louro e olhos muito azuis
que transmitiam bondade.
- Papá, papá, o lince está ferido.
Ajuda-os, por favor. - suplicou ela, com finas lágrimas que deixava cair pelo
rosto e lhe avermelhavam os belos olhos.
- Não podemos levá-los para casa,
Beatriz, são animais selvagens. – disse o pai. - Podem atacar-te.
- A mamã pode ajudá-lo. Ela cuida de
tantos animais.
Ao
dizer isto, a menina olhou de um modo tão terno para o pai que este acabou por
ceder.
- Está bem, a mamã vê isso, mas depois
ligamos para o SOS Animal e eles decidem o que fazer.
António era um homem elegante e com bons
músculos, portanto foi-lhe fácil pegar no lince. Seguidamente e cuidadosamente,
colocou-o na mala do seu jipe. Enquanto isso, Bea pegava na pequena esquila e
colocou-a no cestinho que a mãe tinha na mala, para emergências.
Chegados a casa, António e Bea
transportaram Kaki e Beth para o laboratório de Graça. Beth ficou fascinada com
o que viu. Nunca vira nada igual, nem fazia ideia para que servia. Logo depois
chegou uma pessoa muito bonita. Devia ser a tal mamã. Sim, Bea apresentou-lhes
a sua mãe e disse que ela era a veterinária da cidade e que ia cuidar deles.
Ela deu-lhes água, leitinho e bolachas.
Soube mesmo bem! Depois, examinou Kaki, fez uma tala e colocou-lhe uma ligadura
na pata. Ela era, de facto, adorável.
Por fim, adormeceram de tão cansados que
estavam. Mais tarde, um olhito abriu e…
- Acorda, Kaki, estão aqui os Homens que
nos vão enjaular. É agora que vai ser.
-
O quê? O que foi? Onde estamos? Eu tenho a minha pata muito esquisita.
- Calma, pequeninos. Nós somos amigos!
Vamos colocar-vos num sítio protegido até essa patinha sarar e depois vamos
devolvê-los ao parque natural, que é onde vocês devem estar. – explicou um dos
veterinários da SOS Animal que tinham sido alertados para a situação.
E, após estas dóceis palavras,
aproximaram-se deles. Momentos depois, Maria afagava o pelo de Beth e Bernardo
o de Kaki.
Beatriz chorava, pois queria ficar com
eles.
- Querida, - diziam-lhe os pais – sabes,
são animais selvagens, pertencem à natureza e não à cidade. Nós nem temos
espaço para eles. Não insistas. Eles vão ficar muito melhor no parque natural e nós prometemos que os iremos
visitar.
Foram, então, levados na carrinha da
organização SOS Animal. Claro que era uma jaula, mas os dois amigos perceberam
que era temporária e que era para bem deles. Durante o trajeto até ao jardim
zoológico da cidade, onde iriam ficar hospedados até à recuperação de Kaki,
foram espreitando pela janela da carrinha e apreciando o passeio pela cidade
dos Homens e, embora as estradas aqui fossem muito mais movimentadas, desta vez
iam protegidos. Os dois iam fascinados pela grandeza dos edifícios e por muito
grande que tivessem imaginado a cidade, nunca pensaram que fosse tão grande.
Finalmente, chegaram ao Zoo. A entrada
estava anunciada com letras bem visíveis. A jaula era grande, apesar da
exiguidade face à liberdade da natureza. Havia outros animais mas, em conversa
com eles, não trocavam as suas jaulas pela natureza. Apavorava-os a vida ao ar
livre, ter que lutar pela sua sobrevivência, quando ali os Homens lhes davam
tudo, tratavam-lhes as doenças, davam-lhes de comer, não precisavam de caçar,
tinham higiene. Por outro lado, não precisavam de ter medo dos predadores, nem
das ratoeiras dos Homens. Enfim, gostavam de estar ali.
A verdade é que tudo era bem diferente!
Durante a sua permanência no Zoo, Kaki
foi visto diariamente por um veterinário. Mas, para sua surpresa, Beth também.
Certo dia, a pata dele já estava boa.
Portanto, estava na altura de voltar para casa. Levaram-nos, assim, novamente
na carrinha até que pararam, abriram a jaula onde os transportaram e Beth e
Kaki viram que estavam novamente em casa. Kaki saiu devagarinho com Beth,
empoleirada nas suas costas e observava o mundo que deixara há pouco. De
seguida, levantou o seu nariz apurado e aspirou o ar puro bem seu conhecido,
olhou os Homens que o trouxeram, lançou-lhes um olhar grato e lançou-se na
corrida mais louca que alguma vez fizera. Travou-o o lago, essa imensidão de
água, onde gostava de saciar a sede e se banhar.
Que bom que é estar em casa! Nada melhor
que estar ali. Os seus amigos do Zoo não têm razão, ou talvez tenham mesmo
maneiras diferentes de pensar. Realmente a cidade não era o seu espaço.
Entretanto, na escola, Beatriz passou a
estar à frente de uma campanha de proteção dos parques naturais, tentando
mostrar a todos que estes são áreas conservadas, fora da cidade e que é protegida por lei. Tenta assim mostrar que o seu objetivo é
o de preservar a flora e a fauna locais e que eles
proporcionam um ambiente de lazer e que, por isso, são um ótimo local para
serem visitados durante, por exemplo, os fins de semana.
A Bea e os pais, por sua vez, continuam a
visitar o parque natural, onde os nossos dois heróis habitam.
E agora, caros
leitores, um segredo só nosso: esta simpática família da cidade dos Homens
encontra-se frequentemente comigo e com a Beth. Eles são nossos amigos. Mas
fica só entre nós, pois não há muitos linces, esquilos e humanos que sejam
assim amigos.
Bem! E cá temos nós uma história em que
dois belos animais foram felizes para sempre!
Adriana Matos, O Ciclista