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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Concorrente ao Género Narrativo - Eu sou o Mar!


Parte I

Eu sou forte, poderoso e domino. Sim, domino!
Mas agora? Pareço adormecido?… Não!
Há sempre uma, mesmo que leve, agitação que me faz vibrar. Há sempre uma corrente, fria ou quente, que me agita as entranhas.
O meu ondular, mesmo que quase impercetível, existe. A vida que há em mim suaviza-me o caráter.
Eu jamais adormeço!
Eu atraio aquele que considero o meu maior amigo e inimigo: o Homem!
Eles querem derrotar-me, quebrar-me, tirar o que é meu!
Não gosto muito daqueles que andam naquelas coisas, a que chamam barcos, motas e outros meios com motor, pois poluem as minhas águas. Mas, vá lá! Até os tolero, pois não são muitos nem são muito grandes. Os banhistas, que são aqueles que tomam banho nas minhas praias, é que deveriam reclamar mais, pois às vezes andam a nadar no meio de toda aquela poluição, mas se eles não se importam… quem sou eu?!
Também há uns objetos que de vez em quando passam lá pelo céu. Já ouvi os humanos chamarem-lhe avião. Dizem que fazem propaganda, que transportam mercadorias, que transportam pessoas. Não percebi muito bem. Só sei que também poluem. O Céu disse-me que lhe deixa um mau cheiro bem como rastos e ruídos. Eu só sei que, quando chove, as águas vêm com um sabor diferente, por isso, também não é nada bom.
Os humanos são mesmo esquisitos! Fazem tudo para prejudicar o ambiente. Mas, olhando para eles, parecem felizes. Pelo menos, a maioria deles.
Pior do que isso é que sinto os gritos dos meus pobres animais capturados nas imensas redes dos seus barcos e deixo sempre que me tirem mais um pouco de mim…
Sinto as brocas que perfuram o meu fundo e sugam o meu crude e deixo…
Sinto os barcos que passam e lançam sobre mim os seus resíduos e, mais uma vez, eu deixo…
Sinto os camiões que rasgam as minhas areias, desagregam as minhas rochas e as transportam, não sei para onde.
Sinto os canos que lançam os seus esgotos para dentro de mim e dilaceram as minhas águas e continuo a deixar…
Sinto as redes que aprisionam os meus animais…
Sinto os barcos que lavam os seus tanques nas minhas águas…
Sinto os seus barcos que laceram as minhas águas…
Sinto a cor das minhas águas a mudar!
Sinto o sabor das minhas águas a tornar-se diferente!
Sinto o cheiro das minhas águas a ficar insuportável!
O crude que se espalha e os meus animais, que sentem uma lenta agonia antes de morrer, causam-me uma profunda dor.
Fico ainda sem palavras, quando vejo os alimentos que ingerem e que afinal não são alimentos, mas plásticos que viajam milhares de quilómetros, pelas minhas águas.
Vejo as belas cores dos meus corais a fugirem! Sinto os seus gritos desesperados de uma agonia atroz.
Sinto o meu plâncton a morrer… e com ele, a minha vida a desaparecer!
No princípio, há muitos, muitos anos, deixei que tudo fosse acontecendo. Era tão pouco que o poder de autolimpeza das minhas águas era tão grande que não fazia diferença. Eu deixei que tudo acontecesse. Mas depois, depois… começou a aumentar, a aumentar, a aumentar… e o meu poder de autodepuração começou a ser insuficiente. Eu comecei a sentir o meu poder a diminuir. Comecei a sentir a raiva a crescer, o ódio contra os Homens a desenvolver-se. 
A fúria que há em mim tomou conta do meu mais íntimo ser e expludo! Aí, ai de quem estiver por perto. Devoro e destruo tudo e todos, sejam eles os culpados ou os inocentes. Fico alucinado. A minha imensa raiva cega-me e não me permite tolerar o mal que me fazem e, então, perco toda a minha glória e bravura. Fico reduzido ao mais vil dos seres e, nesse preciso momento, quero mostrar como estou triste e como consigo ser vingativo…
Pode ser só um homem que atraio para mim quando pesca nas rochas, mas que me faz lembrar todos os peixinhos que são depois lançados às águas descartados por não os quererem.
Pode ser um nadador solitário que se aventurou mais do que devia e a sua audácia acabou por ser paga com a vida!
Outras vezes, fico-me por pequenas tempestades e ataco apenas um dos seus barcos, que incauto se deixa apanhar pelo poder das ondas, que lhe lanço, e que impotente perante o seu poder se deixa por fim arrastar para o meu fundo. Destruo vidas humanas, eu sei, mas na minha sede de vingança tudo é esquecido e, nesse instante, só penso no que eles me fazem, em tudo o que me tiram e só penso em atacá-los!
Outra das vezes, quando a fúria e a raiva são incontroláveis, clamo aos céus que me ajudem. E, então, ouço o ribombar dos trovões e vejo as águas que brotam das negras nuvens e que se juntam à violência que imprimo às minhas ondas. Eis, assim, que nada me consegue parar. As vagas aumentam de volume e partem-lhes as grandes embarcações como faço com os brinquedos das sereias, quando estas se portam mal.
Porém, é naqueles dias em que a fúria fica ainda mais viva, é nesses dias que chamo a mim toda a minha força, em que apelo a todo o vigor das minhas entranhas, que duplica o meu já imenso poder. E, assim, com toda a energia acumulada ao longo dos anos e ajudado pelas placas tectónicas que me sustentam, sugo as águas para mim, formando então ondas gigantes que depois lanço enfurecidas e deixo que as minhas águas arrastem, devorem, destruam tudo por onde passem, mesmo aquilo que em tempos ajudei a construir com amor. As ondas gigantes que crio tomam tudo em míseros instantes deixando gritos de dor, iguais àqueles que aqueles inconsequentes Homens me deviam ouvir a mim, quando me tiram os meus peixes, quando me atiram com os seus lixos, quando…
Mas, não me ouvem. Porquê?!
A minha fúria ainda tarda em acalmar. O meu espírito ainda se mantém alerta e tempestuoso. Contudo, lentamente vai serenando.
Eu fico a espraiar-me e a apreciar o meu grande feito, ao longo daquela imensidão de praias que eu dominava e muitas das quais o Homem me tem vindo a tentar usurpar. Gozo o espetáculo que faço.
Vejo a minha vingança tornada realidade. Sinto-me tão bem! Qual rei que vê os seus súbditos castigados por toda a maldade que me têm imprimido ao longo de longos anos.
Vejo as casas a ser destruídas. Oiço o choro dos Homens, os carros que deambulam sem rumo, os barcos que se vão voltando. Os muros desabando…

Finalmente, sinto-me serenar e as minhas entranhas começam a sentir o doce sabor da calma, a raiva desaparece. As minhas águas vão regressando e com elas trazem um mundo de humanos. Vejo homens e mulheres, alguns já sem vida, crianças…

Continua...

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