Parte I
Eu sou forte, poderoso e domino.
Sim, domino!
Mas agora? Pareço adormecido?… Não!
Há sempre uma, mesmo que leve,
agitação que me faz vibrar. Há sempre uma corrente, fria ou quente, que me
agita as entranhas.
O meu ondular, mesmo que quase
impercetível, existe. A vida que há em mim suaviza-me o caráter.
Eu jamais adormeço!
Eu atraio aquele que considero o
meu maior amigo e inimigo: o Homem!
Eles querem derrotar-me,
quebrar-me, tirar o que é meu!
Não gosto muito daqueles que andam
naquelas coisas, a que chamam barcos, motas e outros meios com motor, pois
poluem as minhas águas. Mas, vá lá! Até os tolero, pois não são muitos nem são
muito grandes. Os banhistas, que são aqueles que tomam banho nas minhas praias,
é que deveriam reclamar mais, pois às vezes andam a nadar no meio de toda
aquela poluição, mas se eles não se importam… quem sou eu?!
Também há uns objetos que de vez em
quando passam lá pelo céu. Já ouvi os humanos chamarem-lhe avião. Dizem que
fazem propaganda, que transportam mercadorias, que transportam pessoas. Não
percebi muito bem. Só sei que também poluem. O Céu disse-me que lhe deixa um
mau cheiro bem como rastos e ruídos. Eu só sei que, quando chove, as águas vêm
com um sabor diferente, por isso, também não é nada bom.
Os humanos são mesmo esquisitos!
Fazem tudo para prejudicar o ambiente. Mas, olhando para eles, parecem felizes.
Pelo menos, a maioria deles.
Pior do que isso é que sinto os
gritos dos meus pobres animais capturados nas imensas redes dos seus barcos e
deixo sempre que me tirem mais um pouco de mim…
Sinto as brocas que perfuram o meu
fundo e sugam o meu crude e deixo…
Sinto os barcos que passam e lançam
sobre mim os seus resíduos e, mais uma vez, eu deixo…
Sinto os camiões que rasgam as
minhas areias, desagregam as minhas rochas e as transportam, não sei para onde.
Sinto os canos que lançam os seus
esgotos para dentro de mim e dilaceram as minhas águas e continuo a deixar…
Sinto as redes que aprisionam os
meus animais…
Sinto os barcos que lavam os seus
tanques nas minhas águas…
Sinto os seus barcos que laceram as
minhas águas…
Sinto a cor das minhas águas a
mudar!
Sinto o sabor das minhas águas a
tornar-se diferente!
Sinto o cheiro das minhas águas a
ficar insuportável!
O crude que se espalha e os meus animais,
que sentem uma lenta agonia antes de morrer, causam-me uma profunda dor.
Fico ainda sem palavras, quando
vejo os alimentos que ingerem e que afinal não são alimentos, mas plásticos que
viajam milhares de quilómetros, pelas minhas águas.
Vejo as belas cores dos meus corais
a fugirem! Sinto os seus gritos desesperados de uma agonia atroz.
Sinto o meu plâncton a morrer… e
com ele, a minha vida a desaparecer!
No princípio, há muitos, muitos
anos, deixei que tudo fosse acontecendo. Era tão pouco que o poder de
autolimpeza das minhas águas era tão grande que não fazia diferença. Eu deixei
que tudo acontecesse. Mas depois, depois… começou a aumentar, a aumentar, a
aumentar… e o meu poder de autodepuração começou a ser insuficiente. Eu comecei
a sentir o meu poder a diminuir. Comecei a sentir a raiva a crescer, o ódio
contra os Homens a desenvolver-se.
A fúria que há em mim tomou conta
do meu mais íntimo ser e expludo! Aí, ai de quem estiver por perto. Devoro e
destruo tudo e todos, sejam eles os culpados ou os inocentes. Fico alucinado. A
minha imensa raiva cega-me e não me permite tolerar o mal que me fazem e, então,
perco toda a minha glória e bravura. Fico reduzido ao mais vil dos seres e,
nesse preciso momento, quero mostrar como estou triste e como consigo ser
vingativo…
Pode ser só um homem que atraio para
mim quando pesca nas rochas, mas que me faz lembrar todos os peixinhos que são
depois lançados às águas descartados por não os quererem.
Pode ser um nadador solitário que
se aventurou mais do que devia e a sua audácia acabou por ser paga com a vida!
Outras vezes, fico-me por pequenas
tempestades e ataco apenas um dos seus barcos, que incauto se deixa apanhar
pelo poder das ondas, que lhe lanço, e que impotente perante o seu poder se
deixa por fim arrastar para o meu fundo. Destruo vidas humanas, eu sei, mas na
minha sede de vingança tudo é esquecido e, nesse instante, só penso no que eles
me fazem, em tudo o que me tiram e só penso em atacá-los!
Outra das vezes, quando a fúria e a
raiva são incontroláveis, clamo aos céus que me ajudem. E, então, ouço o
ribombar dos trovões e vejo as águas que brotam das negras nuvens e que se
juntam à violência que imprimo às minhas ondas. Eis, assim, que nada me
consegue parar. As vagas aumentam de volume e partem-lhes as grandes
embarcações como faço com os brinquedos das sereias, quando estas se portam
mal.
Porém, é naqueles dias em que a
fúria fica ainda mais viva, é nesses dias que chamo a mim toda a minha força,
em que apelo a todo o vigor das minhas entranhas, que duplica o meu já imenso poder.
E, assim, com toda a energia acumulada ao longo dos anos e ajudado pelas placas
tectónicas que me sustentam, sugo as águas para mim, formando então ondas
gigantes que depois lanço enfurecidas e deixo que as minhas águas arrastem,
devorem, destruam tudo por onde passem, mesmo aquilo que em tempos ajudei a
construir com amor. As ondas gigantes que crio tomam tudo em míseros instantes
deixando gritos de dor, iguais àqueles que aqueles inconsequentes Homens me
deviam ouvir a mim, quando me tiram os meus peixes, quando me atiram com os
seus lixos, quando…
Mas, não me ouvem. Porquê?!
A minha fúria ainda tarda em
acalmar. O meu espírito ainda se mantém alerta e tempestuoso. Contudo,
lentamente vai serenando.
Eu fico a espraiar-me e a apreciar
o meu grande feito, ao longo daquela imensidão de praias que eu dominava e muitas
das quais o Homem me tem vindo a tentar usurpar. Gozo o espetáculo que faço.
Vejo a minha vingança tornada
realidade. Sinto-me tão bem! Qual rei que vê os seus súbditos castigados por
toda a maldade que me têm imprimido ao longo de longos anos.
Vejo as casas a ser destruídas.
Oiço o choro dos Homens, os carros que deambulam sem rumo, os barcos que se vão
voltando. Os muros desabando…
Finalmente, sinto-me serenar e as
minhas entranhas começam a sentir o doce sabor da calma, a raiva desaparece. As
minhas águas vão regressando e com elas trazem um mundo de humanos. Vejo homens
e mulheres, alguns já sem vida, crianças…
Continua...
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