Ana, a liberdade conquista-se!…
Trim,
Trim… Serenela carrega mais uma vez na tecla que a leva a entrar em contacto
com o desconhecido. Uma nova situação, uma nova denúncia. E todos os dias se
agravam as situações de violação dos direitos das crianças. Todos os dias
aparecem novos casos de trabalho infantil.
- Linha
de atendimento à criança, fala a …
-
Socorro! - grita do outro lado uma vozinha pouco nítida e quase inaudível.
- Sim,
querida. Podias falar um pouquinho mais alto? O que querias?
-
Ajuda! – volta a dizer num fio de voz pouco seguro.
- Podes
falar, querida. – tenta acalmá-la a assistente. – Nós estamos aqui para te
ajudar. Só tens de dizer o que te magoa, o que te está a incomodar. O que se
passa contigo?
De
repente, apenas o silêncio do outro lado da linha.
A
assistente ainda vai para questionar a criança que sente estar suspensa do
outro lado, quando escuta o desligar suave do telefone. Termina assim aquilo
que parece nem ter começado. Mas começou!
Rapidamente
anota o número do outro lado e depressa faz a busca. O que encontra não lhe
agrada. Mas não a surpreende… mais uma fábrica. Esta fica em “Martemar”, uma
zona industrial bem sua conhecida. Não que já tenha alguma vez lá estado. Nada
disso. Conhece-a pelas queixas dos abusos dos patrões de algumas dessas
fábricas. E são muitas as queixas que se apresentam. Muitas as fugas que são
feitas.
Agora
temos de ver esta.
Ligar
de volta não iria resultar, se o fizesse daquele telefone. Eles reconheceriam o
número. Todos conhecem o número do SOS Criança. A criança que ligara sabia que
podia ligar para o número gratuito, 116 111, mas não sabia decerto que ele
ficaria registado no telefone da empresa.
Teria
de agir rapidamente. Pegou no telefone do lado e marcou o número pretendido.
Aquele era confidencial, permanecia anónimo.
Ao
segundo toque, atendeu a voz sonora de uma possível secretária.
-
Martemarsola, boa tarde. Fala Rute Silva. Em que posso servi-la?
- Boa
tarde. Fala Marta Guedes. Eu tenho uma sapataria e gostaria de saber se seria
possível que a vossa fábrica me assegurasse a entrega direta de alguns
materiais, uma vez que não estou nada satisfeita com o meu fornecedor.
- Bem,
D. Marta, a Senhora deve saber que nós só trabalhamos com os intermediários e
não diretamente com as sapatarias.
- Sabe,
Rute, eu sei que isso não é bem assim.
-
Desculpe, D. Marta, não…
- Oiça,
Rute, quer que eu fale sobre as crianças que estão aí a trabalhar?
- Bem,
há sempre maneira de contornar a situação.
A
partir daí desliguei um pouco, enquanto ela me falava dos contornos a seguir
até que o produto chegasse à minha loja. Fiquei por fim de lhe enviar tudo por
correio eletrónico e ela responder-me-ia de volta, o que facilitaria toda a
situação.
Agora
só faltava saber quem era a menina que me tinha telefonado. Contudo, a situação
não se ficava por uma única criança, como ficara bem expresso pela nossa
conversa.
A hora
de ir para casa já tinha passado e distraidamente peguei no meu casaco e
deambulei pelas ruas até à porta do prédio onde morava. A minha filha mais
nova, que me vira pela janela, veio ter comigo à porta e agarrou-se às minhas
pernas pedindo o colo que ansiava. Desde ontem que não me via, pois fora o pai
que a preparara pela manhã e a levara ao infantário. O Bernardo, o meu filho
mais velho, gritou-me um “boa noite, mãe!” e deixou-se estar no quarto dele a
acabar os exercícios de português. Veio mais tarde abraçar-me, quando preparava
o jantar e perguntar-me se eu estava bem, pois deve ter-me sentido distante.
- Sim,
respondi-lhe. – mas, ao olhar para ele, lembrei-me da menina que me telefonara
que pela voz não me parecera ter mais que os seus oito anos. – Vai lavar as
mãos e leva a mana para ela também as lavar que o jantar está pronto e o pai
deve estar a chegar.
Como
todos os dias, cheguei um pouco antes das oito horas ao trabalho. Ainda não
tirara o casaco e o trinar do telefone fez-me dar um salto.
- Linha
de atendimento à criança, fala a …
Mas sou
de imediato interrompida pela mesma vozinha pouco nítida e quase inaudível que
lança o seu grito quase mudo do outro lado.
-
Socorro!
Desta
vez o número que marcara não era o gratuito, mas o 217 931 617.
- Sim,
querida. Bom dia, eu sou a Serenela e tu, como te chamas?
- Ana.
- disse quase num sussurro.
-
Quantos anos tens?
- Andas
na escola?
- Não.
- Os
teus pais?
-
Trabalham cá.
- Os
dois?
- Sim.
- Por
que não vais à escola?
- Eles
não querem. Precisam do dinheiro.
- Há
mais meninos?
- Sim.
- A
Rute não está aí?
Por
momentos, ela calou-se e parecia meditar.
- Não
te preocupes, eu não lhe conto nada.
- Não,
ela só vem às nove.
- Ana,
tens de me prometer que não voltas a ligar. Eu vou-te ajudar. Mas é perigoso
para ti tu ires aí. Podem descobrir, tu percebes?
- Não!
- Podem
ver o número no telefone e descobrir quem o fez.
Ana
começou, então, a chorar.
- Não
te preocupes. Eu vou já tratar para que hoje mesmo a situação se resolva. Vais
fazer tudo o que tens feito até aqui e ficas sossegadinha, está bem?
Ouvi-a
a limpar-se, como se o fizesse à manga e depois, muito baixinho, respondeu que
sim.
-
Então, pensa que eu gosto muito de ti e, se tiveres medo, lembra-te disso. Eu
também tenho dois filhos e faço tudo por eles. E vou fazer como se tu fosses um
deles. Confias em mim?
- Sim.
-
Então, desliga e vai lá. Prometo que está quase a acabar. Um grande beijinho
para ti. Tem coragem.
Depois
de ouvir o clique do telefone, ainda fiquei durante algum tempo a olhar para a
imagem criada na minha mente daquela criança de sete anos que crescera antes do
tempo, que recusara aceitar aquilo que os pais e aquele patrão lhe querem
impingir e procurou saber onde procurar a ajuda certa. Felizmente encontrou.
Reagi
de imediato e disquei o número das autoridades da cidade. Sabia o número móvel
do Cabo da Escola Segura encarregue daquela área de cor, tantas eram as
ocorrências registadas nesta.
- Bom
dia, Cabo Seguro. - sempre me divertia com o nome do cabo por considerar que
era compatível com as suas funções.
- Bom
dia, Dra. Serenela, o que se passa desta vez?
- Mais
uma, Cabo Seguro. Desta vez, tem a ver com a fábrica Martemarsola. Recebi hoje,
pela segunda vez, uma chamada de uma criança, Ana, como se identificou. Sete
anos. Não vai à escola. Trabalha lá. Assim como ambos os pais. Aproveitou o
facto da secretária, Rute, entrar apenas às nove horas para telefonar. Ontem
liguei, após a primeira chamada, a tentar uma encomenda direta para a minha
suposta sapataria e depois de mencionar o trabalho infantil, consegui algo.
Portanto, não é caso isolado.
-
Obrigada, Dra. Serenela. É algo que já desconfiávamos, mas não havia qualquer
certeza. Vamos fazer uma rusga. Depois contactamos. Bom dia.
- Bom
dia, Cabo!
Na
tarde desse mesmo dia, recebi um telefonema a dizer que a polícia já estava a
fazer a rusga e que realmente viram crianças no armazém. Entraram e
questionaram o dono. Ele tentou inventar umas desculpas, mas estava tão nervoso
que não dizia coisa com coisa. Acabou assim por ser levado para a esquadra para
ser interrogado e o resto dos funcionários adultos foram interrogados no local.
Muitas
das crianças foram levadas para uma instituição e a Ana, entre outras crianças,
contou tudo o que se passava lá dentro. Realmente era um absurdo. As crianças
eram exploradas, maltratadas, tinham condições horríveis, muitas delas já se
encontravam doentes. Era realmente uma grande tristeza! Como era possível
aproveitarem-se das pobres e inocentes crianças daquela maneira?!
Naquele
dia, o sol parecia brilhar mais que em qualquer outro. Eu caminhava para mais
um dia de trabalho. O ar parecia mais puro, sentia uma alegria diferente.
Quando cheguei ao escritório, sentei-me na minha secretária como era habitual
e, ainda não tinham passado cinco minutos, quando ouvi baterem à porta. Mandei
entrar, era o Cabo Seguro, pela mão trazia uma criança. Decerto mais um
problema para resolvermos…
Após os
bons dias trocados, a criança adiantou-se, perguntando-me se eu era mesmo a Serenela.
Curiosa,
eu disse-lhe que sim. Então, inesperadamente a menina soltou-se da mão do Cabo
e agarrou-se ao meu pescoço e disse:
-
Obrigada, Serenela. Eu sou a Ana, obrigada por me teres salvado, a mim e a
todas as crianças que estavam comigo a trabalhar. Eu quando for grande quero
ser como tu. Agora vou voltar para a escola. Mas eu tenho sorte, pois fico com
os meus pais em casa. Há meninos que os pais são maus para eles. Os meus
entenderam que não podem ter-me a trabalhar e têm que me deixar ir à
escola.
Eu, com
os olhos já em lágrimas, não consegui articular qualquer palavra. A minha
felicidade era tanta, ao ver aquela criança com aqueles olhos que brilhavam
naquele lindo sorriso espelhado naquele belo rosto infantil, para mim foi um
grande prémio.
A
fábrica foi multada após um longo processo em tribunal.
Algumas
das crianças, que não puderam regressar às suas famílias, continuavam na
instituição, mas outras foram adoptadas. Todas elas já tinham começado a
frequentar a escola.
O sorriso de todas elas era mais descontraído e verdadeiro.
Agora todas elas tinham voltado a ser outra vez crianças!
Adriana de Matos Pedrosa, O Ciclista
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