Parabéns Margarida, pelo excelente texto e, claro, pelo 2.º lugar (Menção
honrosa) conquistado no concurso Ler & Aprender!
A lotaria do amor
- Simão o jantar está
no forno!
- ESTÁ BEM PAI!
Desculpem por esta não
convencional entrada. O meu nome é Simão, tenho dezasseis anos e vivo sozinho
com o meu pai desde que a minha mãe decidiu “afastar-se”. Ela deixou-me na
frágil idade de doze anos. Estou no décimo segundo ano e segundo a minha página
de facebook continuo solteiro.
Ah… ia esquecendo um
“pequeno pormenor de relevo menor” na minha história. É necessário um QI de 140
para uma pessoa ser considerada um génio. O QI de Albert Einstein era de 160 e
o meu…. é de 180. Toda a minha vida soube que tinha uma facilidade anómala para
aprender e sabia que estava à frente das pessoas da minha idade, intelectualmente.
Quando cheguei ao quinto ano já sabia construir funções do quarto grau, ler
livros do tamanho da bíblia e construi uma máquina que transformava a energia
da água corrente em calor com apenas dez anos.
O meu mais recente
trabalho é um teorema que me permite saber a chave completa do euro milhões.
Ainda não está completo, na verdade ainda só consegui acertar um número. Trata-se
de uma combinação de variantes que nos vão levar a uma chave provável através
dos milissegundos que cada bola está a rolar. Se o conseguir acabar vou
finalmente ter a certeza de que uso corretamente as minhas capacidades e
poderei ter tudo o que desejo. Vou ser dono do mundo!
Alguém me estava a
ligar naquela tarde. Era o João. Devia querer pedir ajuda para o trabalho de
Física, como é costume. Somos amigos desde que o que saía da nossa boca eram
pequenos grunhidos sem sentido mas que, por incrível que pareça, toda a gente
acha adorável.
-Sim Jota, o que queres
desta vez.
-Pensei que talvez
quisesses ajudar o teu amigo em algo muito importante. Tão importante que era
capaz de mudar a vida do teu amigo e transformá-lo num pequeno rapaz muito mais
feliz, algo que faria o seu futuro ser mais radiante repleto de felicidade…
-Jota não precisas de
parecer uma criança. Eu ajudo-te com o trabalho. Além disso queres passar mais
logo cá por casa. Podemos fazer uma maratona de videojogos. Traz as pipocas e a
Coca-Cola.
-Obrigada Einstein!
Posso ir ter contigo agora em vez de ser mais tarde?
-Não, agora não dá. Desculpa.
-Hum, já percebi. Novo
projeto. O que andas a tramar desta vez?
-Desculpa mas não te
vou contar. – não pensem que quero o prémio só para mim mas não quero estar a
desenvolver duzentas horas de trabalho por telefone – Fica para uma próxima.
-Ok. Não faz mal. Por
volta das nove apareço aí em casa.
- Fica combinado. Até
logo.
Passei o resto da tarde
a tentar melhorar o teorema e, acreditem ou não, consegui. Apenas tive de
adicionar mais uma raiz de x ao quadrado para alcançar um resultado diferente. Era
só aguardar pelo dia seguinte para saber se tinha acertado ou se o meu teorema
ainda precisava de remodelações.
No dia seguinte acordei
com vontade zero de ir para a escola. Acreditem que muitas vezes torna-se
frustrante saber mais que o próprio professor. Mas ainda assim levantei-me, fui
tomar o meu pequeno-almoço e só depois de ver o meu pai vestido e pronto a sair
de casa me apercebi do quanto estava atrasado. Estivera a jogar com o Jota até
à uma da manhã e depois de ele ir embora ainda fui rever o teorema.
Apressei-me o mais que
pude. Sinceramente acho que as meias que calcei não eram propriamente da mesma
cor mas não tinha tempo a perder.
Quando cheguei à escola,
a minha primeira visão foi a Matilde. Não é que seja grande admiração. Ainda
não vos contei mas ela é algo que a minha grande paixão desde o sexto ano. A
verdade é que eu já me declarei a ela, mas, como me acontece sempre em tudo o
que seja assunto não relacionado com inteligência, notas escolares, concursos
literários ou olimpíadas de todos os tipos de disciplinas, fui rejeitado. A
Matilde era simplesmente boa demais para mim. A mais bela criatura à face da
Terra, capaz de criar guerras e construir a paz com a sua palavra. Tudo o que
sai da sua boca é da maior pureza existente. Os seus cabelos cor de fogo caíam
em duas perfeitas tranças. Um sonho demasiado longe para eu alcançar.
Grande parte da minha
grande vontade de fazer com que o teorema dê certo é de certo modo para que ela
me veja de outro modo. Nunca fui reconhecido por nada sem ser as minhas notas.
Já que tenho tão pouco fora do nível intelectual quero o nome, quero a fama,
quero o poder. Não fiquem a pensar que sou convencido ou arrogante. Nunca me senti
realizado numa qualquer área senão naquilo que posso atingir com as minhas capacidades
intelectuais. Estava decidido a atingir o meu objetivo.
A Matilde veio ter
comigo e trazia um sorriso capaz de iluminar o mundo.
-Simão! Atrasado outra
vez. Que se passa?
-Nada ando só
ligeiramente cansado. Não tenho dormido bem. – a Matilde também ainda não sabia
de nada.
-Espero mesmo que seja
só isso. Mudando de assunto. A professora Alberta – minha professora de
português – faltou. Já foi toda a gente embora para o café jogar bilhar. –
ultimamente o bilhar virou a maior moda da minha turma – Não estava com grande
vontade por isso pensei em ficar aqui. Podemos ir ao parque junto aos laboratórios
de biologia.
- Sim claro. Sabes bem
que o bilhar não prende, de todo, a minha atenção.
Fomos andando
calmamente para o parque. Há muito tempo que não estávamos tão próximos, talvez
desde que eu lhe contei genuinamente o que sentia por ela.
-Está um dia lindo, não
achas? - a minha estúpida pergunta só prova que falar do tempo é sempre um tema
fácil que nos permite escapar a conversas constrangedoras
-Absolutamente.
- Não está nem muito
quente nem muito frio. A temperatura perfeita para uma manhã de Primavera.
-Concordo.
-Bem acho que ambos já
percebemos que isto está a ser um pouco estranho. Melhor, muito estranho. Talvez
não termos falado grande coisa durante estes meses fosse exatamente para evitar
situações como esta.
- Eu sei que está a ser
e a culpa de isto ter ficado assim é toda minha. Desculpa ter-me afastado. Tu
não fizeste nada de mal. Eu é que estive mal. Não sabia o que te dizer. Tinha
medo de estragar a nossa amizade. Tinha medo de ser um fardo para ti. E no fim
de tudo fiz muito pior. Deixei-te de lado só porque não tive coragem de te
confirmar o que sentia.
-Espera, não estou a
perceber o que estás a dizer.
-Pertencemos a mundos
diferentes. Eu sempre fui a menina popular que toda a gente tinha em
consideração. Tu sempre te tentaste afastar de tudo o que fosse social. Pensei
que eramos diferentes. Que tínhamos realidades diferentes mas estava enganada,
profundamente enganada. Uma relação não se baseia em unir pessoas com o mesmo
estatuto social mas em juntar pessoas capazes de se compreenderem mutuamente.
Pessoas que com um simples cruzar de olhar dizem mil palavras. Eu sei que já
passou muito tempo desde que me falaste. Talvez a minha hipótese já tenha
passado. Mas finalmente percebi o que sentia.
-Não vais tarde
Matilde.
Não me contive mais e
beijei-a.
-Acho que isso quer
dizer…
-…que sim. Eu ainda
gosto de ti.
Ainda dizem que o
destino não existe. Pois eu não podia arranjar melhor timing e melhor dia para chegar atrasado.
Passei o resto do dia
com a Matilde, mas não vou estar a relatar episódios românticos porque já tinha
decidido que esta história seria principalmente sobre o meu teorema e não sobre
a minha vida amorosa.
Às nove e meia exatas estava à frente da televisão. Esperava
ansiosamente pelo resultado. À medida que os números saiam comparava-os com os
meus resultados. Quatro números e uma estrela correspondiam. Mas o que estava
mal? Pensei sinceramente que seria desta que iria conseguir prever a chave. Há
um ano que andava a trabalhar neste projeto e ainda não obtera os resultados
pretendidos.
Entretanto passaram-se quatro meses. Continua junto e feliz com a
Matilde e… continuava sem acertar na chave.
As aulas tinham acabado e os resultados dos últimos exames já não
estavam nas nossas mãos. A Matilde tinha ido passar as férias a Macau com os
pais. O João decidiu ir passar uma semana à Noruega com a irmã e eu fiquei em
Portugal a torrar no que parecia ser o mês de Julho mais quente de sempre.
Uma vez que estava sozinho e não tinha distrações decidi focar-me
no teorema. Adicionei mais duas incógnitas, v e n, que representavam
respetivamente a velocidade que cada bola adquire e o número de voltas que cada
uma dava até atingir a o t (representa o momento em que uma bola é escolhida
sendo que t=0s é quando a bola começa o movimento). Elevei v ao quadrado e
multipliquei n por t. Agora era esperar que estivesse finalmente correto.
O meu pai não estava em casa nessa noite. Ficara no escritório até
tarde a fazer horas.
De repente ouvi a música do jogo, sinal de que iria começar o
sorteio. Seriam já nove e meia? Mas eu ainda nem sequer tinha jantado.
Apresei-me a ir buscar a minha previsão e fui compará-la com a do sorteio. Os
números foram surgindo. Primeiro apareceu o trinta, depois o vinte e seis, a
seguir o cinco, o vinte e o sete. Por fim era tempo de saber as estrelas: dois
e nove.
Olhei sem reação para o meu papel. 5-7-20-26-30 e 2-9.
Não podia acreditar. Ao fim de tanto tempo, depois de tanto
trabalho consegui acertar a chave. Mas o que faria com ela. Era demasiado para
mim. Sempre pensei que seria o correto. Sempre foi o que desejei. Mas não me
estava a sentir tão bem quanto esperava. Estava com medo. Não podia aguentar
mais. Tinha de contar finalmente à Matilde.
Fui à minha página do Facebook e ao ver a marca verde ao lado da
sua fotografia, o meu coração apressou-se. Já lhe devia ter contado mas… nunca
tinha surgido o momento certo.
Simão: Olá! Precisava mesmo de falar contigo. Estou a incomodar?
Matilde: Sabes que aqui são cinco e meia da manhã certo? Mas sim
diz o que queres dizer.
Simão: Eu sei que já devia ter dito isto há algum tempo mas ainda
não tinha surgido o momento. Desde que me rejeitaste que eu decidi criar um
teorema que me pudesse trazer felicidade. Que pudesse preencher um vazio. Algo
que me garantisse um futuro sem preocupações até ao resto da vida.
Matilde:
E…???
Simão: E tentei criar algo que previsse a chave do euro milhões.
Nunca pensei verdadeiramente que iria conseguir, mas na verdade consegui. Não
sei o que fazer estou um pouco assustado.
Matilde: Uou! Mas… espera! Isso não é ilegal? Se tu usares isso vai
ser considerado batota!
Simão: Sim mas pensa naquilo que eu posso conseguir. Pensa no
reconhecimento que me vão dar! Finalmente vão ver algo em mim.
Matilde: Simão, tu e todos sabem que tu és provavelmente o rapaz
mais inteligente que alguma vez algum de nós conheceu. Não é à toa que a tua
média é de 20. Mas tu não podes aproveitar-te de algo ilegal para te fazeres valer.
Fico feliz por teres conseguido e isso só prova que tu és realmente um génio.
Não te posso obrigar a não usares mas não posso concordar se o fizeres porque
não estás a querer reconhecimento pelos motivos certos.
Simão: Lá está as pessoas vêem-me como o excelente aluno que tira
vinte a tudo e eu quero ser mais que isso.
Matilde: Estou cansada e cheia de sono. Vou dormir e aconselho-te a
fazer o mesmo. Pode ser que o sono te sirva para acalmar as ideias.
(Matilde ficou offline)
Fui-me deitar porque apesar de ainda ser cedo em Portugal. Estava a
sentir-me cansado e não estava a dar nenhum programa suficientemente bom para
me manter na sala.
Muitas dúvidas pareciam invadir a minha cabeça. Estaria a Matilde
correta? Talvez ela estivesse! Nunca pensara nisso anteriormente mas na
realidade eu nunca pensei sequer que o que eu estava a fazer não era sequer
legal. Além disso o que faria eu com tanto poder? O que faria eu com tanto
dinheiro? Estaria eu preparado para tudo isso?
Na manhã seguinte acordei. Olhei-me ao espelho e senti um tremor.
Apesar de ainda querer achar que não sabia o que fazer, a minha
cabeça e o meu coração já se tinham reunido em segredo e já tinham tomado uma
decisão. Apesar de o meu teorema ter um grande valor monetário não o poderia
usar. Mas não seria mais fácil descobrir o sucesso da forma mais convencional?
Iriam haver muitos mais momentos para eu poder mostrar as minhas capacidades e
eu deveria ter percebido desde o início que aquilo que estava a fazer não era
correto.
Nunca iria conseguir lidar com tanto poder. Se nem tomar conta dos
meus peixes sem os deixar morrer eu era capaz, quanto mais lidar com tanto
dinheiro. A minha decisão estava tomada. Não iria usufruir da minha descoberta.
O seu propósito inicial sempre fora um motivo para a Matilde se apaixonar por
mim e agora consigo ver o quão imaturo isso foi. Não era com dinheiro que eu a
ia impressionar. Eu conquistei a Matilde sendo eu mesmo, não me deixando
modelar pelos padrões que a sociedade julga importantes.
Muitos podem achar a minha decisão estúpida mas eu já tenho tudo o
que preciso para viver uma boa vida. Tenho um pai que me adora, o melhor amigo
que alguém pode ter e uma namorada que eu sempre adorei.
Ninguém sabe como poderia ser o meu futuro se usufruísse do poder
do teorema, talvez daqui a uns anos possa criar um teorema que me faça
descobrir mas para já sou uma pessoa feliz e prefiro ver qual será o meu futuro
não tento usufruído do poder que tinha nas mãos.
O teorema não foi destruído. Está simplesmente guardado num local
suficientemente seguro para que mais ninguém tenha conhecimento dele.
Por fim, só espero que um dia venha a ser reconhecido sem infringir
nenhuma regra de algum jogo e que em vez de a minha inteligência ser usada para
fins materialistas e meramente egoístas, seja usada para o bem das pessoas.
Quem sabe se não sou eu a encontrar a cura de uma doença dizimadora ou até
encontrar a solução matemática para a recuperação da banca mas para já o meu
teorema é demasiado valioso para as pessoas tirarem proveito dele. Mas garanto
que irão ouvir falar mais de mim daqui a uns anos.
Margarida
Costa Pereira, n.º 19, 11.º B, Agrupamento de Escolas de Anadia
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