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sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O Assassino


A enferrujada pick-up Chevrolet travou bruscamente e Leonor Santos acordou sobressaltada ao bater com a cabeça no vidro do passageiro. Pestanejou meio atordoada e sentiu a cabeça a nadar com memórias dispersas, fragmentos que, se os juntasse uns aos outros, formariam um todo. Recordava-se da música country e das explosões de riso. Tinha pedido um copo daquela garrafa porque a fazia sentir-se zonza. Uma mão firme servira-lhe o álcool segundos antes de ela o engolir de uma só vez.
- Outro. - disse ela, pondo o copo vazio no balcão do bar.
Recordava-se também de dançar um slow com um cowboy. Tinha-lhe roubado o chapéu e ficava-lhe melhor a ela. Era um Stetson preto que combinava com a amostra de vestido negro que ela trazia.
Tinha saído de casa às escondidas e os pais nunca se lembrariam de a procurar ali. Dentro de pouco tempo, estaria tão alcoolizada que nem se lembraria de como eles eram.
Tentara refugiar-se no mundo da arte, num mundo de calças de ganga sarapintadas, dedos manchados e tudo mais, mas os pais tinham-lhe cortado as bases. Não queriam uma artista na família. Queriam uma filha com o diploma de Stanford. Se os pais gostassem dela tal como ela era, não teria de usar vestidos ordinários que irritavam a mãe nem de se entregar a causas que ofendiam o egoísmo e a moral do pai.
Quase desejou que a mãe estivesse ali a vê-la a dançar, a deslizar, a murmurar-lhe ao ouvido as piores coisas que lhe vinham à cabeça.
Só pararam de dançar quando ele foi ao bar buscar mais uma bebida e Leonor seria capaz de jurar que tinha um gosto diferente das outras ou se calhar já estava tão embriagada que até imaginara que era um pouco mais amarga. O cowboy perguntou-lhe se queria ir para um lugar mais sossegado e Leonor não demorou a decidir-se. Se era algo que a mãe não aceitaria, a reposta era óbvia.
A porta do passageiro abriu-se e a visão de Leonor parou de rodopiar por instantes, dando lhe tempo suficiente para se concentrar no cowboy. Pela primeira vez, reparou na acentuada curva da cana do nariz e deu por si a imaginar como seria bom encontrar um homem que praticasse o autocontrolo em vez de recorrer a infantilidades.
Ele fê-la erguer-se do banco e pô-la por cima do ombro. A parte de trás do vestido começou a deslizar pernas acima, mas Leonor parecia incapaz de ordenar às mãos para que o endireitassem. Sentia a cabeça pesada e frágil como uma das jarras de cristal da mãe. Para sua grande surpresa, assim que a ideia lhe ocorreu, sentiu-se miraculosamente mais leve e parecia voar para longe do corpo. Não se lembrava de como ali tinha chegado. Teriam vindo na pick-up? Baixou os olhos para as marcas que os sapatos do cowboy deixavam na neve. O ar frio combinado com o odor dos pinheiros, faziam-lhe arder as fossas nasais. Ouviu a corrente metálica do baloiço de um alpendre a ranger. O som fê-la suspirar e arrepiar-se.
Escutou o cowboy a abrir uma porta à chave. Tentou deslocar as pálpebras tempo suficiente para se poder orientar. De manhã, teria de ligar ao irmão para a ir buscar - isto assumindo que seria capaz de lhe dar as indicações corretas. O irmão arrastá-la-ia de volta para o chalé, repreendendo-a por ser tão irresponsável, mas viria. Vinha sempre.
O cowboy, interrompendo-lhe a reconstrução dos acontecimentos e os pensamentos, pô-la de pé, segurando-lhe os ombros para a ajudara equilibrar-se. Leonor olhou em redor. Estava numa cabana de troncos. A pequena sala onde se encontravam tinha mobília rústica de pinho, do tipo que fica mal em todo o lado menos numa cabana no meio da floresta. Uma porta aberta ao fundo da divisão conduzia a uma pequena arrecadação com as paredes forradas com prateleiras de plástico. Estava vazia, à exceção de um varão que ia do chão ao teto e uma máquina fotográfica montada num tripé e posicionada de frente para o varão.
Leonor sentiu o medo a tomar conta dela. Tinha de sair dali. Aquilo era uma desgraça prestes a acontecer. Os pés dela, porém, recusavam-se a mexer. O cowboy fê-la recuar até ficar encostada ao varão. Quando a soltou, Leonor deixou-se cair. Os sapatos de salto alto escorregaram-lhe dos pés quando perdeu o equilíbrio. Estava embriagada de mais para se conseguir levantar sozinha. Sentiu uma tontura e pestanejou rapidamente, tentando localizar a saída da arrecadação. Quanto mais procurava concentrar-se, mais a divisão parecia girar à sua volta. Sentiu o impulso de vomitar e debruçou-se para o lado para evitar sujar a roupa.
- Deixaste isto no bar – disse o cowboy, largando-lhe o boné dos Cardinals em cima da cabeça.
Tinha sido o irmão a oferecer-lho, algumas semanas antes, quando Leonor foi aceite pela Universidade de Stanford. O presente chegara numa altura suspeita, pouco depois de Leonor ter anunciado que não fazia tenções de ir para Stanford nem para outra Universidade qualquer. O pai ficara tão vermelho, após ela ter anunciado isso, que quase esperava vê-lo a deitar fumo pelos ouvidos como uma caricatura humorística.
O cowboy tirou o fio de ouro que Leonor trazia ao pescoço por cima da cabeça.
- Valioso? – perguntou-lhe, examinando de perto o medalhão em forma de coração.
- É meu – disse ela, subitamente na defensiva.
O medalhão pertencia-lhe. Os pais tinham-lho oferecido na noite do primeiro recital de ballet, 12 anos atrás. Seria a primeira e a única vez que aprovariam uma iniciativa da filha. Era a única lembrança que possuía de que, no fundo, gostavam dela. À exceção do ballet, a infância de Leonor fora comandada pela visão dos pais. Dois anos antes, aos 16, a visão de Leonor ganhara corpo: pintura, teatro, bandas de música alternativa, dança contemporânea, comícios na companhia de ativistas políticos e intelectuais, mas não falhados, que abandonaram a universidade para seguirem percursos educativos alternativos, e um namorado com uma mente brilhante e torturada que fumava erva e rabiscava poesia nas paredes, nos bancos dos parques, nos carros e na alma de Leonor. Os pais tinham deixado bem claro que não aprovavam o seu novo estilo de vida. Tinham-lhe dado regras e horários rígidos. A rebeldia era o único contra-ataque que Leonor conhecia. Tinha chorado às escondidas quando se sentiu obrigada a desistir do ballet, mas tinha de os atingir de alguma maneira. Não podiam simplesmente escolher partes dela que deviam ser amadas. Ou o seu amor era incondicional ou iriam perdê-la para sempre.
- É meu – repetiu.
Precisou de toda a sua concentração para pronunciar as palavras. Tinha de recuperar o medalhão e sair dali. O cowboy pendurou o medalhão no puxador da porta, libertando as mãos e, em seguida, amarrou-lhe os pulsos com um pedaço de corda. Leonor encolheu-se de dor quando ele deu um puxão para testar os nós. Tinha dito que ia com ele, mas não concordara com aquilo.
- Solta-me! – exclamou.
Pôs os ombros para a frente, num esforço inútil. O cowboy tinha-a amarrado ao varão. Como iria recuperar o medalhão? A ideia de o perder fê-la sentir uma onda de pânico. Se pelo menos o irmão lhe tivesse ligado de volta! Tinha-lhe deixado uma mensagem a dizer que ia a uma festa. Leonor só queria ter a certeza de que ele ainda gostava dela o suficiente para a impedir de cometer um erro. Chegou a pensar que o irmão tinha desistido dela. O cowboy estava a ir-se embora. À porta, afastou o Stetson preto da testa com uma expressão arrogante. Leonor deu-se conta da enormidade do erro que tinha cometido.
-Tenho uma surpresa à tua espera lá atrás, no barracão das ferramentas – disse ele a arrastar as palavras.
Leonor tinha a respiração acelerada. Quis dizer-lhe o que pensava da surpresa dele, mas sentia as pálpebras pesadas e cada vez lhe custava mais manter os olhos abertos.
Mais cedo do que esperava, a forma do cowboy apareceu novamente à entrada. As luzes da sala iluminavam-no por trás, fazendo com que a sua sombra fosse o dobro. Já não trazia o chapéu e parecia mais corpulento do que antes, mas não foi isso que captou a atenção de Leonor. Ela fixou o olhar nas mãos dele, que traziam uma segunda corda. Deu-lhe um esticão para avaliar a resistência da corda. Aproximou-se de Leonor e atou-lhe a corda à volta do pescoço. Colocou-se por trás dela e usou a corda para lhe puxar o pescoço contra o varão. Leonor viu pontos brancos de luz diante dos olhos. A corda estava demasiado apertada. Apercebeu-se do nervosismo e da excitação do cowboy. Estava cada vez mais ofegante, mas não devido ao esforço físico, e sim devido à adrenalina. Ele estava a gostar daquilo.
Um estranho barulho chegou-lhe aos ouvidos e horrorizada, apercebeu-se de que se tratava da sua voz. O ruído pareceu incomodar o cowboy que resmungou qualquer coisa e puxou ainda mais a corda. Por dentro, Leonor gritava sem parar à medida que a pressão aumentava. Percebeu, então, que o cowboy a queria matar. Fechou os olhos e deixou-se envolver pela escuridão.
O cowboy tinha-a matado.
Andreia Cunha, 9.º A, Escola Básica de Vilarinho do Bairro

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