Estou sentada no parapeito da janela do meu quarto.
Vivo no terceiro andar de um apartamento, no coração da cidade, onde há muito
trânsito, barulho, pessoas apressadas, confusão. Não sou, de todo, uma pessoa
citadina. Preferia mil vezes a nossa antiga casa, numa aldeia pequena, onde
todos se conheciam.
As memórias dessa antiga casa ainda estão vivas na
minha cabeça.
Lembro-me das noites de trovoada (apesar de temer
os trovões, eram as minhas preferidas), nas quais pegava na minha almofada
(quase tão grande quanto eu, na altura) e ia ao quarto dos meus pais pedir para
dormir com eles. Ambos sorriam e consentiam.
Lembro-me de adorar as manhãs de domingo. Eu e o
meu irmão, o Diogo, sete anos mais novo que eu, levantávamo-nos mais cedo que
os meus pais para lhes fazermos o pequeno almoço: panquecas com chocolate ou
doce de morango e leite morno a acompanhar. Virara rotina. Mas, ainda assim,
fazíamo-lo sempre como se fosse surpresa e os nossos pais mostravam-se sempre
surpreendidos.
Eu era tão feliz. Mas todos sabemos que o destino
não deixa a felicidade durar muito.
No início do inverno, com treze anos de idade,
recebi a triste notícia de que o meu pai falecera. Não foi propriamente um
choque: ele havia sido diagnosticado com cancro no ano anterior. Lutou como um
guerreiro contra a doença, mas esta estava num estado muito avançado.
Mudámo-nos dois meses após a partida do meu pai.
Não gostei da escolha que a minha mãe fez, mas compreendi. Aliás, confesso que
também me fazia confusão olhar para qualquer coisa daquela casa e lembrar-me do
meu pai, lembrar-me das covinhas que fazia ao sorrir, das piadas secas que
contava para toda a família na ceia de Natal, lembrar-me de quando me pegava às
cavalitas, de quando cantava no chuveiro. Tinha mesmo que o perder?
Às vezes, sinto que não lhe dei o devido valor, mas
agora é tarde para arrependimentos.
Estas, apesar de grandes, não foram as únicas
mudanças na minha vida. Como mudei de casa, vi-me obrigada a mudar de escola
também. Esta era completamente diferente da outra escola. Fazia umas vinte da
antiga, sem exageros. Foi horrível ter de deixar os meus amigos. Amigos que
conhecia desde o pré-escolar, amigos que me apoiaram sempre, amigos que me
admiravam pelo que era e não pelo que tinha.
Nesta nova escola, apesar do maior número de
alunos, sentia-me sozinha. Mas isso não era o pior. O pior era a forma como me
tratavam!
Ninguém me deu a oportunidade de mostrar quem era
realmente, rotularam-me, imediatamente, como “a estranha” e, quando nos rotulam
como diferentes, isso desumaniza-nos, de alguma forma.
Sempre tive dificuldade em fazer novas amizades.
Sou muito tímida e insegura. E, pelo que entendi, as pessoas daquela escola
achavam-me muito convencida. “Não olha nos olhos de ninguém, acha-se mais que
os outros!”, “Não gosta de falar connosco, pensa que é superior!”. Bem, era
apenas medo, insegurança, vergonha, não sei bem ao certo. Mas sei que
definirem-me como convencida estava muito longe da realidade. Por não falar
muito, achavam-me melancólica. Disseram-me, uma vez, que eu era um “demónio com
um pequeno coração satânico”, mas eles não sabiam a minha história, eles não
passaram pelo que eu passei e, ainda assim, sentiam-se no direito de me julgar.
Julgar por ser diferente, por agir de forma diferente, por fugir ao padrão.
Aterrorizaram o meu primeiro mês naquela escola,
mas, passado esse mês, era como se eu não existisse: simplesmente,
ignoravam-me, desprezavam-me. Passei o resto desse ano escolar como um
fantasma. Bem, não completamente.
Consegui fazer uma amiga, a Mariana. Éramos muito
parecidas, partilhávamos os mesmos gostos. Ela ajudou-me imenso nesse ano e
ensinou-me várias lições valiosas. Lembro-me de me ter dito, uma vez: “A dor tem
uma função didática na vida das pessoas.”. Essas palavras ecoaram-me na mente
por muito tempo. A partir daí, comecei a encarar os imprevistos da vida como
lições, recordando sempre que, mais tarde, seriam apenas memórias distantes.
Mas nem sempre é fácil convencermo-nos disso.
No ano escolar seguinte, no meu décimo ano, conheci
um rapaz extraordinário, achava eu, o Rodrigo. Era alto, loiro e tinha olhos
claros.
Fomo-nos aproximando aos poucos e, quando dei por
mim, namorávamos.
Ele fez-me sentir como nunca ninguém antes, fez-me
acreditar que eu tinha um ótimo futuro pela frente. Eu precisava de uns braços
que me protegessem, de uns olhos que olhassem para mim, de um sorriso
reconfortante, de alguém que quisesse saber tudo o que ia na minha mente e
posso dizer que encontrei tudo isto nele. Sentia-me melhor com ele por perto.
Ele era tudo o que eu precisava!
Tudo parecia um sonho, mas, aí, a realidade decidiu
que estava na hora de eu acordar.
Ele prometeu-me que nunca me iria deixar, mas a
verdade é que foi embora. Na verdade, eu já devia estar habituada: ouço,
constantemente, promessas abundantes, mas, mais cedo ou mais tarde, todas elas
provam ser vazias. Eu não sei ao certo o motivo pelo qual ele me deixou, mas
sei que, na semana seguinte, já namorava.
E foi aí que passei a odiá-lo. Odiá-lo por me ter
deixado como se a nossa relação não significasse nada. Odiá-lo por me fazer
questionar o porquê de eu não ter sido suficiente. Ele fez-me acreditar que era
bom demais para mim, que merecia mais do que eu podia prometer. E isso
destruiu-me.
Sentada aqui, no parapeito da janela, tento
imaginar a história de todas as pessoas de lá de baixo. O que terão visto
aqueles olhos? Que palavras ecoarão nas suas mentes? Também estarão perdidas
nos seus próprios pensamentos?
Bem, esta é a minha história. Eu tenho de lidar com
isto.
É certo que o meu passado não foi o melhor, mas,
hoje, entendo que eu posso sempre recomeçar. Cada dia é um novo recomeço, uma
nova oportunidade de ser melhor. O meu passado não pode ser apagado, está para
além do meu controlo. Não o posso reescrever ou simplesmente começar do zero,
mas este meu passado não é culpa minha e não tem de ser o que define o meu
futuro.
Beatriz Fernandes, 9.º A, Escola Básica de
Vilarinho do Bairro
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