Chegava uma tempestade.
Todos corriam para se abrigar. Todos menos ela. Não entendia o porquê de todos
fugirem da chuva, afinal não é por correrem dela que ela não vos apanha.
Simplesmente não valia o esforço. Para além disso ela gostava da chuva. Era
revigorante, a sensação gelada na pele dava-lhe um certo prazer.
Estava quase a chegar a
casa. Precisava das chaves para entrar. Sempre no bolso interior do casaco.
Dessa forma nunca perderia tempo à sua procura. Ela não gostava de perder
tempo. O tempo era precioso. Finito. Não se podia dar ao luxo de o desperdiçar,
ainda havia muito a fazer.
A rotina era a mesma:
Entrar em casa,
Acender a lareira,
Preparar o jantar.
Desde que entrara na
faculdade que este era o seu ritual quando acabavam as últimas aulas. A sua
casa não era particularmente acolhedora, mas a renda era baixa e tinha acesso
ás necessidades básicas, por isso servia.
O telemóvel toca. Do outro
lado uma voz chama o seu nome. Era estranho, ouvir o seu nome. Raramente o
ouvia, não havia amigos ou professores com os quais ela fosse mais chegada, mas
não fora por isso que demorara a responder. Era devido ao tom da voz. Estava
triste, ou pelo menos desanimada, mas tinha a certeza que lhe faltava a euforia
caraterística de um televendedor ou a solenidade de um político ou agente
fiscal. Não podiam ser boas notícias. Tinha razão.
A
voz pertencia a um médico.
Queima.
A voz dizia que este era o
número mais chamado.
Queima.
O que a voz disse a seguir
não foi ouvido por ela. Não por completo. Apenas o suficiente...
O seu peito queimava.
Estava... Só. Estava só. Sentiu a cara molhada. Estava a chorar. Normal. Fazia
sentido. Algo tinha que fazer afinal. A voz não fazia. Carro. Chuva. Mas que
grande combinação. Atreveu-se a pegar no telemóvel outra vez. Chamada
terminada.
Levantou-se. A água já
fervia e a lareira precisava de lenha. Isso ela conseguia resolver. Tirou a
panela do lume. Não tinha fome. Atirou uma cavaca para a lareira. Tinha frio.
Muito frio. Seria do tempo? Bem sabia que não. Não era a primeira vez que isto
acontecia. Primeiro foi sua mãe, abandonou-as e a seu pai. Sempre lhe disseram
que foi por não se amarem mais, mas ela sabia a verdadeira razão. Dinheiro.
Depois foi seu pai. Cancro. Incurável. Tratamentos dispendiosos. Estimativa: 6
meses. Quando por fim morreu devia 3 anos ao barqueiro. A sua irmã esteve
sempre lá. Sempre. E agora... Não. De um momento para outro, no espaço de uma
simples chamada, não restava nada. Ela era a última. A ideia sempre a
aterrorizou, mas sempre dissera que preferia que este sofrimento fosse dela do
que da sua irmã. Disso não se arrependia.
Do que ela fez a seguir
arrependeu-se. Era o álbum de fotos. Para além dela era a última prova de que
tinha passado por este mundo. Todos sorriam nas fotos, exceto aqueles que eram
apanhados desprevenidos. Esses faziam caretas. Riu-se. Chorou. Arrumou o álbum.
Não tinha ajudado.
Estava na hora. Teria que
lidar com isto mais cedo ou mais tarde. Mais valia ser agora. Enquanto a luz
não regressava. A luz, afinal, era sempre acompanhada por sombras, sempre lhe
disseram. Pegou no carro. Não era costume utilizá-lo. Vivia num apartamento
relativamente perto de um supermercado, um café e uma estação de comboios.
Estes últimos quase que substituíam por completo o seu automóvel. Quase. Para a
próxima viagem ela preferia estar no controlo. Colocou a chave e rodou. Nos
minutos seguintes estava fora da garagem e seguia em direção ao hospital. Fora
das primeiras coisas que a voz tinha dito: o seu nome e o hospital onde
trabalhava.
Marco 201...
Estava lua cheia...
Marco 202...
Ela iria adorar...
Marco 203...
Nunca mais iria ver a lua
da mesma forma. Era agora um lembrete de que perdera algo que nunca iria
recuperar.
Diogo
Oliveira
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