Lembro-me tão bem da minha infância. Lembro-me da minha aldeia, do
perfume da primavera, das alergias, do verão. Como será possível crescer e não
se notar?
Os dias passavam devagar naquela altura, amanhecia cedo, e anoitecia
tarde, e o cheiro, aquele cheiro era deveras inesquecível. Um cheiro a
liberdade, a frutos, a água, a natureza. Era como se eu apenas tivesse sido
feliz essa parte da vida, como se só aqueles dias me pudessem trazer a paz que
eu realmente precisava. Eu era feliz naquele tempo. Era feliz no campo, embora
andasse sempre toda suja, era feliz no abraço da minha avó, era feliz sem todas
estas tecnologias que atualmente me rodeiam. Enfim, vivia satisfeita na azáfama
da aldeia, apesar da sua humilde simplicidade.
Lembro-me tão bem das brincadeiras simples que tínhamos, lembro-me de
jogar às escondidas com os meus primos, lembro-me do “iogurte com açúcar” que a
minha avó me dava. Também recordo aqueles momentos em que fingia ser uma menina
grande e tinha por hábito pintar-me no quarto da tia, calçar os saltos altos e
pedir insistentemente para ser crescida (mal sabia eu onde me estava a meter!).
Para onde foi tudo isso? Já não existe mais? Infelizmente, separámo-nos
todos. Na verdade, a vida não nos deixa
ficar para sempre na doce inocência. Se eu pudesse, recuaria tudo atrás,
repetiria tudo de novo, faria as mesmas brincadeiras, aleijar-me-ia as mesmas
vezes, choraria e riria tudo de novo, apenas para ter o companheirismo, o
sentimento que tinha antes. Faz-me falta este espírito, acreditem que aí, sim,
eu era feliz e não agora.
Sinto, pois, falta de quem já partiu, sinto falta de brincar com o
andarilho do bisavô, e fingir que era como ele, sinto falta de lhe escolher os
comprimidos com o máximo carinho e de o ver a ler o jornal com aqueles óculos
enormes, sinto falta das lengalengas da bisavó e das coisas menos apropriadas
que me contava, sinto falta de a ver naquele banco sentada.
Porque é que a vida tem de ser assim connosco? Porque é que as pessoas
de quem gostamos não podem ficar junto a nós para sempre? É injusto! Tudo é
injusto! De facto, não se devia morrer, especialmente quando se tem um papel
tão importante na vida dos outros.
“O efeito da memória é levar-nos
aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que
estejam connosco.”
Não posso dizer que não tenho boas memórias recentes, ou que tenho sido
infeliz ultimamente, estaria, pois, a mentir. Mas muito desse passado me faz
falta, nomeadamente as pessoas, as despreocupações e aquela liberdade inocente
da qual eu usufruía.
Ana
Patrícia Fernandes, O Ciclista
Sem comentários:
Enviar um comentário