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domingo, 4 de outubro de 2015

Perguntar para perceber



Premiado com o 2º lugar, género narrativo, na categoria do ensino secundário.
Parabéns Carlos!


Era uma tarde fria, escura e chuvosa. Era praticamente impossível sair de casa e ausentar-se do calor e do aconchego de uma lareira acesa. Mas o que mais aquecia César e o seu avô Augusto era a bela conversa que ambos mantinham nessa tarde.
César gostava bastante do seu avô. E as qualidades que mais apreciava nele eram a sua inteligência e sabedoria. Sim, estas duas caraterísticas que muitas vezes são utilizadas como sinónimas eram, para César, duas competências distintas. Inteligência é a capacidade do Homem se adaptar a novas situações e novas circunstâncias de uma maneira racional; sabedoria é o saber adquirido ao longo da vida.
A dada altura da conversa, César perguntou ao avô qual era a letra mais importante do alfabeto. Não havia nenhuma razão em especial para essa questão. Era apenas César a tentar testar a inteligência e a sabedoria do avô Augusto.
O avô tirou um momento para refletir sobre a questão, tal como a sua formação académica o obrigava. Quem é filósofo tem a obrigação de refletir sobre as perguntas que lhe são colocadas antes de lhes procurar uma resposta válida e legítima. Após alguns minutos, o avô Augusto respondeu com toda a certeza e convicção:
- É a letra P.
Não satisfeito com tão simples resposta (claros ensinamentos do avô em relação ao não-conformismo e à constante procura de saber) pediu uma justificação para aquela resposta. Confiante, o avô Augusto defendeu a sua opinião:
- Comecemos esta explicação com uma frase de um grande escritor e poeta português: “O que importa é partir, não é chegar”. Sabes a quem é que eu me estou a referir, não sabes?
- Estás a fazer uma alusão ao poema “Viagem” de Miguel Torga. É um poema muito bonito, mas não percebo o porquê de lhe estares a fazer uma referência – contestou César.
O avô Augusto ficou surpreso com esta resposta. Não pensava que seria possível um jovem de dez anos ter paciência para ler e compreender a sublime escrita de Torga. Contudo, continuou a conversa com César:
- O que este poema nos diz é que o mais importante é ter a coragem e a ousadia, ou, como diz Pessoa, a loucura de iniciar novas aventuras, sejam elas físicas ou psíquicas. E diz-me agora um sinónimo de início!
- Existem bastantes palavras. Palavras como começo, princípio…
- Para! – interrompeu de imediato o avô Augusto ao ouvir a palavra que pretendia – Princípio. É uma palavra que começa por P. Deixa-me fazer-te uma questão: qual é a estação do ano mais bonita que existe?
César ficou pensativo durante alguns segundos. Mas respondeu com todo o fulgor que a estação mais bela que existia era a Primavera, a estação do ano em que ambos nasceram, a única estação do ano começada por P. O avô Augusto, contudo, ainda não tinha terminado o seu raciocínio e fez diversas perguntas:
- Qual é o único local deste mundo que é teu e apenas teu? O único lugar que tu controlas? O único espaço onde tudo se passa conforme tu queres e onde és verdadeiramente livre? A resposta a estas três questões é comum e muito simples: o teu pensamento. E a palavra pensamento começa por P.
César ficou perdido na sua mente. Todavia, não teve tempo de a reestruturar pois o avô Augusto lançou mais uma série de questões:
- Qual é o tempo mais importante que existe? Qual é o tempo em que ambos vivemos? Também a resposta a estas questões é simples, meu filho: o presente. Não deves, no entanto, descuidar e subestimar o passado pois foi o passado que nos tornou nas pessoas que somos hoje. E as palavras passado e presente começam por P.
Mais um momento de reflexão por parte de César. Quando colocou a pergunta ao avô nunca julgou que o seu pensamento fosse abalado por tamanhas concepções. Ainda pensava no que o avô Augusto por último lhe dissera quando foi novamente atingido por outras questões:
- Quem é que te trouxe a este mundo? Quem é que está contigo todos os dias da tua vida? Estas duas questões têm duas respostas diferentes: os teus pais e Deus. A palavra pais começa por P e Deus também pode ser chamado de nosso Pai, palavra começada por P. E não te esqueças que o chefe da tua paróquia é o padre e o líder da tua Igreja é o Papa. O filho do Pai disse para o seu apóstolo Pedro: “Teu nome é Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. Nos sacramentos do batismo, confirmação e matrimónio são-te atribuídos padrinhos, palavra essa que começa por P. Continuemos a nossa caminhada pela religião. O Natal é um tempo de paz e, geralmente, monta-se o pinheiro e o presépio: três palavras começadas por P. E que outra época do ano existe? É a altura da ressurreição de Jesus Cristo: a Páscoa e a seguir à Páscoa vem o Pentecostes. E as palavras Páscoa e Pentecostes começam por P. Tu, quando morreres, certamente tens a esperança de ires para um mundo melhor. Tens fé que haja um paraíso paradisíaco à tua espera, onde viverás uma vida perpétua. E todos esses conceitos começam por P.
Pensamentos e reflexões filosóficas e teológicas deste género são um pouco complicadas para serem totalmente percebidas por um petiz de dez anos. Mas, como com esforço e empenho tudo se consegue, César fez uma pergunta ao avô Augusto que o deixou um bocado absorto. Perguntou-lhe como é que era possível coisas más como perder, problemas, pecado e pobreza serem importantes. No entanto, o avô Augusto também conseguia esclarecer a dúvida do neto e disse-lhe:
- Para saberes ganhar, tens de aprender a perder. E a palavra perder começa por P. Os problemas resolvem-se de forma pacífica e para o pecado somente existe uma solução: ter piedade e perdoar. E as palavras problemas, pacífica, pecado, piedade e perdoar começam por P. E apenas aqueles que vivem na pobreza conseguem atingir a plenitude. E ambas as palavras começam por P.
Tiradas as dúvidas, César preparava-se para fazer uma última questão ao seu avô, mas foi interrompido para mais uma reflexão pujante por parte do avô Augusto.
- Até em termos estéticos, as coisas mais importantes começam por P. Para os olhos tens as suaves pinceladas de Picasso nas suas pinturas, as pirâmides do Egito e as paisagens do nosso país. Para os ouvidos tens os pássaros com o seu cantar e as belas melodias tocadas num piano e acompanhadas pela voz do Pavarotti. Para o nariz tens o belo odor dos perfumes, das pétalas e dos pomares. E para o paladar delicias-te com iguarias como pão, panocha, peixe, polvo, pato, picanha, peru, porco, presunto, paio e pastéis. Porém, não é só de pão que o Homem vive e, por isso, Platão escreveu uma bela parábola: a parábola ou alegoria da caverna.
Ocorreu mais um momento de silêncio para César poder absorver estas novas informações. Mas foi sol de pouca dura:
- Também anatomicamente se comprova a importância da letra P na nossa vida. Tu nasceste porque houve um parto. Tu só andas porque tens pernas e tens pés. E eu pergunto-me: onde se encontra o coração? É no peito! E a palavra peito começa por P.
Mais um momento de reflexão que durou poucos segundos, uma vez que o avô Augusto lançou a conclusão da sua reflexão sobre a importância da letra P:
- És apenas pó de estrela e vives no planeta Terra, na península Ibérica, em Portugal, dentro de quatro paredes e onde há uma só porta. Vives num país com belas paisagens. Tens o mar. Mas o que é o mar sem uma praia? Até o maior oceano se chama Pacífico. Os príncipes e princesas vivem num palácio. És governado por políticos, protegido por polícias e ensinado por professores. Vives numa comunidade cheia de pessoas e num regime democrático onde o poder é do povo. Procuras, produzes, pedes, permites, procrias, proteges, preservas, pertences, progrides, passeias e peregrinas. A sabedoria popular é designada por provérbios. Se desconfias de alguém pedes provas, procuras pistas e pedes para te explicarem tudo ponto por ponto. Tens prestígio, privilégios, prioridades e princípios. Fazes promessas e pactos e tens perseverança. Sentes prazer em viver e tiras proveito da vida, partilhas sentimentos e sentes a sua pureza. Vives porque há plantas que te dão ar. Tens amigos e tens irmãos, teus parceiros de vida. Há boa disposição porque há palhaços e há paródias. Manténs-te informado através dos periódicos. Prata e platina são metais valiosos. E, por falar em coisas valiosas, existem pedras preciosas e pérolas. Escreves porque há penas e há papel. Lês porque há belas páginas maravilhosamente escritas. Se queres congratular alguém dás-lhe os parabéns e bates palmas. Portanto, parabéns, meu filho, por seres a criança prodígio que és. A palavra amor não começa por P. Mas o sentimento mais intenso que existe começa: paixão. Tudo o que é belo e perfeito começa por P! Até mesmo a palavra perfeição começa por P. Tal e qual como a poesia. E que bela é a poesia de Pessoa e de Torga!
Não satisfeito, César coloca a questão que não conseguira perguntar a alguns momentos atrás.
- Mas, avô, a palavra avós não começa por P. E essa é a palavra mais bonita e perfeita que eu alguma vez ouvi.
O avô Augusto sorriu e, calmamente, respondeu:
- Não te esqueças, meu filho, que os avós são pais duas vezes. E a palavra pais começa por P. Portanto, é lógico, evidente, indiscutivelmente e essas coisas todas que a palavra avós começa por um duplo P.
Carlos Vinhal Silva, nº 5, 12º A

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