Parabéns David, pelo 1.º lugar alcançado no Concurso “Ler e Aprender”!
O Ciclista, Clube de Jornalismo
do AEA
“O que é preciso é ser natural e calmo (…)
Assim é e assim seja.”
Alberto
Caeiro
Capítulo I
A neblina erguia-se do rio suavemente e inundava a clareira ladeada de
choupos onde a erva alta e verdejante colecionava gotas gordas de orvalho. Por mais
efémeras que fossem, lutavam por se manter equilibradas nas extremidades das
ervas vergadas pelo seu peso. Os choupos centenários, que muralhavam aquele
pequeno círculo a céu aberto, observavam o outono a despir as suas copas e a
almofadar o solo com as folhas secas, transformando-o numa manta retalhos de
amarelos, cremes e castanhos. O silêncio que ali imperava, apenas interrompido
pelo ocasional grasnar de um corvo revoltado e pela sinfonia harmoniosa das
águas do rio e do vento a acariciar os ramos nus das árvores, foi abruptamente
eclipsado por uma alma errante.
Uma alma de olhos verdes que espelhavam o verde da erva como se a
Natureza nem se tivesse preocupado em substituir a palete de cores quando os
criou aos dois. Cabelos ruivos como as abóboras que se amontoavam nos celeiros
e esperavam o destino deleitoso das papas com canela. Cara magra e pontilhada
de sardas, com maçãs do rosto protuberantes e maxilares salientes como se
quisessem romper a pele. No seu rosto macilento, abria-se um sorriso largo que
denunciava os seus dentes de uma extrema alvura enquanto fazia arrastar as suas
pernas magras e branquinhas acumulando montículos de folhas que se erguiam
ruidosamente. Deixando um rasto de destruição inocente nas colónias de insetos
que se haviam refugiado no abrigo das folhas, aproximava-se da clareira, erguia
a fronte para o céu e analisava as nuvens grisalhas e raiadas. Espontaneamente,
fez-se ouvir na sua cabeça a sábia voz da avó:
- Céu cavado, chão molhado!
A chuva avizinhava-se. No entanto, não recuou e continuou a vaguear pela
floresta. Ao longe, os sinos da igreja chocavam estrondosamente fazendo ressoar
pelas redondezas aquele fragor que condizia com o progressivo escurecer. O
ruído impelia o rapaz a erguer a mão ossuda ao ouvido e a desligar furtivamente
o aparelho que, após um curto e agudo sonido, extinguiu todo o ruído à sua
volta. Prosseguia a sua caminhada, mas agora, sem o barulho rítmico das folhas
arrastadas a seus pés, o que lhe dava a sensação de estar a flutuar.
Relembrou-se de que tinha de estar em casa antes do sol ceder o lugar à lua,
mas não queria regressar antes de visitar o seu reduto. Assim, começou a correr
velozmente desviando-se agilmente das árvores, até que irrompeu pela clareira
adentro e destroçou o frágil equilíbrio do orvalho. Mergulhou por entre a erva
e deitado naquela cama, contemplou os ramos nus dos choupos que o recordavam
dos dezassete outonos que já havia saboreado e sofrido, embora pouco ou nada se
lembrasse dos primeiros cinco. A reflexão pouco durou e relutantemente teve que
se pôr a caminho de casa. Passou pelos trilhos anteriormente abertos por si
mesmo, pelas vinhas recém-podadas e saltou o muro baixo de xisto que separava
as terras de um carreiro de terra batida por onde passavam as ovelhas e o seu
pastor. Esse mesmo carreiro que o conduzia à aldeia deu lugar à rua calcetada
ao mesmo tempo que o cheiro a barro molhado, a gado e a verdes era destronado
pelo fumo das várias chaminés que inundavam o ar com aquele aroma que inspira e
pressagia o inverno.
O mesmo fumo enleava-se com a atmosfera húmida e fria que se sentia nas
ruas lavadas pela chuva, desertas naquela hora e tenuemente iluminadas pelos
raros candeeiros e pelas luzes que se escapavam pelas janelas das casas. A luz,
o frio e aquele aroma nostálgico cozinhavam um ambiente místico que seduzia o
rapaz. O seu passo, agora lento, fazia-se anunciar pela batida seca do pequeno
salto dos seus sapatos nos paralelos de granito.
Apesar da camisola de lã que levava sob a camisa e das meias altas que
encontravam os calções ao nível dos joelhos, o frio da noite gelava-lhe o
nariz, as orelhas e as pontas dos dedos. Apesar disso, ele gostava e desejava aquela
dor. O frio doía-lhe intensamente, mas era simultaneamente entorpecedor e
revigorante. Numa atitude quase masoquista arregaçou as mangas e inspirou
profundamente para logo de seguida expirar uma nuvem gigante de vapor que
ambicionava atingir as proporções das que se encontravam no céu.
Nutria uma paixão saudosista tanto pelo outono como pelo inverno e embora
desejasse, por vezes, que fossem eternos logo a seguir refutava o seu desejo ingénuo
com a ideia de que precisava do verão e da primavera, pelo menos, para poder
ansiar pelas suas estações prediletas. Acreditava que mais que estações da
natureza, o outono e o inverno eram estações da alma.
O frio gélido sempre o havia fascinado pelas sensações e sentimentos que
lhe despertava. Enigmaticamente, sentia-se mais sólido, mais consistente no seu
ser, não sentia a sua essência dispersar-se. Contrariamente, o verão trazia
consigo o calor insuportável que fazia evaporar a sua existência física
dando-lhe a sensação de que a qualquer momento poderia diluir-se ou esfumar-se.
O frio dava-lhe segurança, o calor, receio. Os arrepios que lhe formigavam o
corpo, desaguavam em borboletas que sentia na barriga e, apesar disso,
acreditava que era uma ideia bizarra e nunca se atreveu a confessá-la a quem
quer que fosse.
Enquanto meditava esta sua reflexão, deu por si à porta de casa e o
pensamento evadiu-se da sua consciência mal sentiu o aroma do jantar. Entrou,
esgueirou-se pelas escadas, descalçou os sapatos enlameados e desceu deslizando
de meias pelo soalho até à cozinha onde balbuciou uma desculpa qualquer pelo
atraso. Sentou-se à mesa e com gestos calmos e lentos levava as colheradas de
sopa à boca saboreando cada uma como se fosse a última. Mal detetava o assunto
fútil ou o tema desagradável que invariavelmente se discutia à hora de jantar,
desligava discretamente o aparelho auditivo e deleitava-se com a comida.
Ocasionalmente cerrava os olhos e ficava a sós com o seu paladar e o seu
olfato. A momentânea interrupção da audição e da visão permitia-lhe explorar as
complexidades dos aromas e sabores de uma humilde sopa, desenvolvendo-se numa
miríade de sensações inacessível aos demais. O seu espetro sensorial havia
ultrapassado as fronteiras do vulgar possivelmente devido à surdez. Com a
ausência de um dos sentidos, os restantes encontraram um vazio que devia ser
preenchido e expandiram-se até níveis fora do comum. Assim, desde cedo o rapaz
encarou a sua peculiaridade não como uma maldição, mas sim como uma dádiva.
Quando reabriu os olhos, constatou que a acérrima discussão ainda não
havia terminado e escapuliu-se da mesa sem que tivessem notado a sua ausência.
Subiu para o quarto e, quando abriu a porta, reparou nas gotas que se
acumulavam na janela, assim que ligou o aparelho ouviu a chuva ensurdecedora
que bombardeava o telhado da casa. A ela aliava-se o vento que assobiava por
entre as frestas das janelas e, ouvindo a melodia deste bulício, o rapaz
adormeceu como se a Natureza lhe tocasse uma lira de embalar.
Foi neste dia que o vi pela primeira vez. Foi neste dia que o segui até
casa e da rua obscura o observei pela janela. Foi neste dia que, meditativo,
concluí, enquanto o contemplava, que, tal como as gotas de orvalho que ele
havia destroçado, também a sua vida estaria condenada à efemeridade.
Capítulo II
Na manhã seguinte, quando a lua já visitava terras longínquas que ele
jamais vislumbraria, despertou. Pulou energeticamente da cama e desceu
descalço, de cuecas e com a camisola de lã para tomar o pequeno-almoço. A casa
estava deserta, mas o vapor que se escapulia da cafeteira indicava que os
outros haviam saído há pouco tempo. Aproveitou a ocasião e sentou se em cima da
mesa de pernas cruzadas, pegou no pão e rasgou um pedaço junto ao nariz para
lhe extrair o aroma, pegou num frasco de doce de mirtilo e noutro de mel e
deliciou-se enquanto fatiava finamente uma maçã que polvilhou com canela.
Naquele momento não desejaria nada mais que aquilo, aquele banquete pacatamente
simples, aquecido pelos raios de sol que invadiam a casa e lhe secavam as
remelas nos olhos.
Após aquele prazer gustativo, abandonou a cozinha e foi lavar a cara.
Encarando o seu reflexo no espelho, despiu a camisola e com as mãos geladas percorreu,
de forma hesitante, o pescoço, as clavículas frágeis, o peito e os ombros. Ora
tateando delicadamente, ora apertando dolorosamente, vigiava a mão a sondar a
sua pele morna que se arrepiava ao contacto com as mãos frias que pareciam ter
ganho uma certa autonomia e exploravam perplexas e curiosas.
Depois de saciado, lavado e vestido com o perfume da alfazema que
escondia no armário, saiu de mãos livres e partiu para as marinhas de arroz.
Prontamente chegou aonde pretendia. Um pensamento que vinha a ganhar forma ao
longo do caminho, adensou-se assim que se sentou à sombra de um salgueiro
ancião que vigiava as cegonhas. Esta ideia, que havia tomado como refém a sua
atenção, agradava-lhe. Muitas vezes, ideias como estas nasciam-lhe depois de
horas e horas a cogitar, mas esta surgiu-lhe espontaneamente. Sempre se havia
alheado de tudo e de todos numa solidão autoinfligida e recentemente havia
encarado a vida de uma forma natural, pura e simples, aceitando estoicamente a
ordem e a inevitabilidade do curso da Natureza. Deste assentimento nascera uma
conduta singela e uma reverência pelo mundo natural e rural. Contudo, o
mistério e a incerteza da sua existência continuavam a agoniá-lo repetidamente,
até que, neste dia, decidiu abraçar a incapacidade de escapar ao desconhecido,
iniciando uma dança com a incerteza e o absurdo.
Enquanto contemplava a paisagem pintada diante de si, avistou alguém que
a pintava, literalmente, na outra margem da marinha. Era uma velhinha de cabelos
prateados que refletiam os raios de sol e, embora estivesse longe, o rapaz
identificou-lhe uma certa tenacidade nos gestos e nas pinceladas. Encontrava-se
exatamente voltada, tal como a tela, na direção do salgueiro enorme. Também ele
estaria a ser retratado ainda que apenas como uma silhueta humana indistinta.
No entanto, o rapaz, assim que pôde, rebolou da sombra gelada do seu
confidente e sentou-se encostado a um tronco caído ao sol. Era um daqueles dias
em que, à sombra, era inverno e, sob o sol, era verão. Misteriosamente estes
dias eram propensos à reflexão. Subitamente, apercebeu-se de que talvez tivesse
sido indelicado com quem se dava ao trabalho de o esboçar e pintar, mas quando
desviou o olhar para o lugar onde poucos minutos antes a senhora estava
instalada, constatou que ela havia desaparecido. Rapidamente, um sentimento de
remorso apoderou-se do rapaz apesar de não ter sido manifesta maldade quando
escapou ao seu olhar atento. O que ele não sabia é que a missão da pintora
estava concluída.
Nesse mesmo dia, redigiram o epitáfio da artista sexagenária e eu nem
esperei que o inscrevessem na lápide para usurpar a sua derradeira obra.
Capítulo III
Quando o céu se acinzentou e os ventos submeteram os ramos do salgueiro
à sua fúria, o rapaz decidiu regressar a casa. Apesar das gotas que o céu
começava a derramar hesitantemente, o passo do rapaz manteve-se impassível na
sua lentidão. Nem mesmo quando as nuvens ganharam uma coragem impetuosa e
explodiram de forma torrencial e incessante ele se apressou. Completamente
encharcado, caminhava serenamente à medida que as gotas lhe caíam violentamente
na cabeça, pingava por todos os lados e dos cabelos escorria uma cascata que
lhe cobria a cara. Se por acaso estivesse a lacrimejar, ninguém que o encarasse
notaria nas suas lágrimas. Não era o caso, muito pelo contrário, a serenidade
do seu passo espelhava a serenidade da sua consciência. Havia chegado a uma conclusão
que lhe parecia tão vulgar ou escassamente interessante que não era razão para
correr e anunciá-la ao mundo.
No entanto, era aquele entendimento que me estava a estorvar a tomada de
uma decisão, ou melhor, a concretização de uma sentença que há muito tempo já
estava determinada e que tristemente já me era implacável.
Não sabia o que lhe havia guiado ao encontro daquela intuição, não tinha
sido fruto de nenhuma epifania nem de um intenso raciocínio. Contudo, havia
alcançado a chave para uma vida plena, o sentido que muitos ambicionavam e
poucos logravam. Tantos dedicaram a vida à tentativa de desvendar essa charada,
tantos se sacrificaram e quantos encontraram um beco sem saída? Complicaram o
que era simples à partida. A todos estava acessível e a tão poucos foi claro. E
o rapaz vislumbrou-o na contemplação daquilo que todos olham diariamente, mas
que poucos veem: a Natureza.
No dia e na noite, no sol e na lua, no calor e no frio, nos ramos da
árvore que tentam alcançar as nuvens e na sua raiz que se enterra
aconchegadamente na terra. Foi esta dualidade que poucos souberam aplicar à
condição humana, também ela repleta de ambivalências, numa atitude de
superioridade face à Natureza e alheando-se da forma como a integram. Uma vida
na corda bamba, lutando pelo equilíbrio. É a compreensão da inevitabilidade e
da necessidade do que é positivo e do que é negativo na vida. Nesta essência
reside o segredo. Na sua candura o rapaz alcançou-a.
Que martírio agoniante este. Observei os humanos no seu melhor bem como
na sua faceta mais obscura. Não faltei a nenhum dos desastres da História.
Contudo, quando a hora daquele rapaz se aproximava não deixei de sentir um peso
na consciência e um remorso terrível que me consumia as entranhas. Uma vida que
poderia ter sido usufruída tão sabiamente e, no entanto, estava condenada a
sucumbir tão abruptamente.
Capítulo IV
Nos dias que se seguiram, o rapaz contraiu uma moléstia que piorava
vertiginosamente, até que numa manhã em que o sol demorou a nascer e a lua
teimava em não ceder o seu lugar, o rapaz, deitado placidamente e espreitando
as copas das árvores pela janela, deu o seu derradeiro suspiro de complacência.
Branco como os lençóis que cobriam a sua fragilidade, sussurrou pouco antes na
solidão para que a Parca o escutasse:
- Talvez quisesses que as borboletas no meu ventre se transformassem em
cinzas na minha boca, mas eu entrego me serenamente e sem rancor à tua imperial
vontade. Eu aceito-te. Aceito-te como aceito tudo naturalmente. Abraço-te como
acolho da mesma forma o dia e a noite e o florir de uma flor que flore sem
saber. És, para mim, nada mais que uma trovoada e nada menos que o canto das
andorinhas.
A Morte escutou melancolicamente e murmurou sob o silêncio:
- Perdoa me, meu rapaz.
Naquele dia a Morte folgou o mundo do seu laborioso calvário e vagueou
pelas marinhas de arroz. Contemplou pensativamente o gigante salgueiro cujo
tronco se aconchegava de musgo e rebentos de fetos. Delicadamente, extraiu um
papel dobrado do bolso que desdobrou cuidadosamente e, à medida que inclinava o
olhar, admirou a pintura de dois olhos intensamente verdes como o musgo que
cobria o salgueiro-chorão. Voltou a erguer a face e dos seus próprios olhos
brotaram lágrimas inauditas.
FIM
David Pires, 12.º Ano, Escola
Básica e Secundária de Anadia
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