João era um menino alegre e despreocupado. Nascera no seio
de uma família pobre, mas honrada. Os valores, que os pais lhe transmitiam,
serviriam um dia para traçar com sensatez o seu futuro, que João ainda
desconhecia.
Os pais, Maria e Jaquim,
como era chamado na pequena aldeia transmontana, viviam do que a terra lhes
dava.
Maria era uma mulher alta, magra e muito bonita. A sua
doçura era a sua principal qualidade. Joaquim, com o seu 1,86 m e pele bastante
morena, curtida pelas agruras do tempo e da vida, tinha um toque rude e ao
mesmo tempo de ternura. Ambos, de facto, sentiam-se com força para mais e
melhor. Não por eles. Contudo, gostariam de dar ao seu filho um futuro mais
risonho do que o seu. Em contrapartida, os respetivos pais quase nem os tinham
deixado terminar a escola primária, para logo os iniciarem numa vida de
trabalho e cansaço. Estavam assim habituados a levantar-se e a deitar-se cedo e
o trabalho não os afligia. A pobreza, essa é que deveras os atormentava.
O século XX estava pleno de oportunidades, mas que surgiam
distantes dessa aldeia perdida para cá de Trás-os-Montes. Razão pela qual
tinham de tomar uma atitude, antes que outros lhes passassem à frente.
João chorou ao longo de toda a viagem, não pelas pessoas
que ficavam nessa aldeia perdida e completamente desabitada, pois os seus
únicos habitantes não eram mais que dois casais de idade. Até eram simpáticos,
ensinavam-lhe muitas coisas, algumas nem as entendia, mas não eram eles que o
faziam sofrer pela partida. O que mais o fazia sofrer era ter de deixar aquele
cheiro a natureza, as vinhas dispostas em socalcos, o rio Douro que nadava por
entre as serras e a liberdade de correr e de se perder por todos esses lugares
místicos e maravilhosos.
Lisboa pareceu-lhe uma cidade fria e deselegante. As ruas
lembraram-lhe, de imediato, o seu Douro de tão imensas que eram, mas estas eram
frias e as suas margens eram desprovidas de árvores e de flores. As casas, que
as ladeavam, perdiam-se na imensidão do céu.
Instalaram-se numa parte de uma dessas enormes casas,
apartamento como lhe chamavam nesta grande terra, a que apelidavam de cidade.
Porém, a sua nova casa não se situava numa dessas ruas enormes, mas sim numa
bem pequenina que lhe fazia lembrar a da sua aldeia.
O seu quarto até era “giro”. A janela dava para um grande
rio, que ainda não lhe fora apresentado, mas do qual gostou, logo que o viu.
Mais tarde, soube que se chamava Tejo.
A mãe e o pai conseguiram trabalho numa fábrica que ficava
lá para os lados de Sacavém, mas tinham de ir de comboio, que não ficava muito
longe da casita onde viviam, casita não, do tal apartamento.
Os pais disseram-lhe, então, que em setembro iria para a
escola. Explicaram-lhe que era para ele aprender, pois precisava de ser alguém,
de construir o seu futuro.
A escola não ficava muito longe de casa e ele podia ir a
pé até lá. Tratava-se de um edifício grande, nada comparado com aquela casinha
minúscula da sua aldeia e que já nem funcionava. Esta escola tinha muitas salas
e, nas janelas, viam-se vários trabalhos dos alunos. Um dia, João certamente
também iria gostar de ver lá um dos seus. O recreio tinha baloiços e um
escorrega que ficava por baixo de uma frondosa árvore. João achou que ia gostar
de andar ali, naquela escola bonita e com ar acolhedor.
A mãe, por sua vez, disse-lhe que deveria ter cuidado, bem
como não deveria falar com ninguém, nem aceitar nada de desconhecidos. Na
escola, deveria comportar-se bem, ouvir o que o senhor professor lhe iria
dizer, pois era muito importante aprender. Por outro lado, tinha de respeitar
os colegas e de arranjar amigos, algo que ele nunca tinha tido, pelo menos crianças
da sua idade. Amigos, ele tinha-os: o Douro, os vinhedos, os pássaros, mas
esses ficaram lá longe. E passou assim o resto de agosto a contemplar as
belezas do simpático Tejo e a esperar o dia em que iria, finalmente, para a tal
escola.
Setembro chegou, lentamente, e o dia, em que estava para
ir para a escola, apresentou-se soalheiro e bem-disposto. Tal como ele se
sentia.
Era, então, o primeiro dia de escola, o seu primeiro dia!
Ansioso, vestiu a sua melhor roupa, a de domingo, e preparou-se para ir para
aquele lugar que tanta curiosidade lhe estava a despertar.
A mãe e o pai acompanharam-no, levando-o pela mão. Já
outros dias, ao domingo, eles haviam feito esse trajeto, para se habituar a
ele, como lhe diziam os pais.
A algazarra era enorme, havia meninos de todas as cores
(para ele, uma novidade). As meninas estavam enfeitadas com vestes coloridas e
com belos sorrisos estampados no rosto. Alguns dos mais pequeninos, como ele,
choravam agarrados às mães e pediam-lhes para os levarem dali. João não os
entendia. Aquele parecia ser um lugar mágico. O lugar que lhes iria ensinar uma
profissão, como os pais já lhe tinham explicado.
O professor, por sua vez, mandou-os entrar a todos para
uma sala grande e cheia de mesas pequeninas e uma grande, onde ele se sentou.
João e as outras crianças sentaram-se nas cadeirinhas, que se encontravam junto
a cada mesa e os pais rodearam a sala, mas ficaram de pé. O senhor professor,
Daniel Melo, como disse chamar-se, saudou-os a todos com a sua voz de gigante,
embora com uma expressão afável no olhar. Explicou como a escola era importante
e como ali se deveriam sentir em família.
Depois dos pais deixarem os seus filhos, a aula continuou,
cortada pelo soluçar de um ou outro colega. O professor falou-lhes de um modo
severo, mas ao mesmo tempo transmitindo uma doçura que acabou por os acalmar.
Entretanto, foi no recreio que tudo começou. João fizera
uma espécie de amizade com a sua colega de carteira, a Joana, pois estavam
colocados por ordem alfabética. Não que os meninos compreendessem o que isso
significava, mas perceberam que tinha a ver com a ordem do seu nome. E, isso
chegou.
No recreio, Joana juntou-se a algumas coleguinhas, que já
vinham do infantário, e João viu-se perdido no meio de um estranho e
desconhecido mundo, embora o seu tempo de convívio com crianças fosse
praticamente nulo, cortado apenas nos dias em que, ainda na sua pequena aldeia,
acompanhava os pais à feira a Lamego e se aventurava em conversas com este e
aquele rapazola que por ali, também, vagueava como ele. Porém, não era rapaz
para desistir e, como tal, abeirou-se de um grupo de meninos que tinha visto na
sua sala de aula. Pareceu-lhe que os meninos o olhavam de um modo esquisito,
mas pôs as culpas no facto de serem da cidade. Momentos depois, quando chegou
junto deles, aquele que parecia ser o chefe deu-lhe um encontrão e disse-lhe:
- Vai para a tua
terra, ó provinciano malcheiroso!
João, apanhado pela surpresa, não reagiu, fitando o colega
com o seu doce olhar.
– Eu tomo banho todos os dias. – referiu ele, levando à
letra as palavras do colega e pensando que ele o empurrara por pensar que não
tomara o seu banho diário. De seguida, as gargalhadas dos outros ecoaram-lhe
nos ouvidos, fazendo-o recuar com vergonha.
A partir daí, João isolava-se e apenas a sua amiga Joana
lhe falava. Todos os outros lhe viravam a cara, afastando-se dele.
Envergonhado, nada dizia em casa. Apenas contava as partes boas. Na aula,
destacava-se pela sua inteligência e gostava de ouvir o professor dizer-lhe que
ele ia muito bem. Contudo, o seu sorriso quase se apagou do seu belo rosto.
E foi assim durante quase todo o 1.º ciclo.
Rafael, o líder do grupo, os ninjas, como se apelidavam, e que outrora o havia gozado, era um
rapazinho forte e temido por todos. Mas, nas aulas, a sua prestação era de
todas a pior.
– Se continuas assim, chumbas! – dizia-lhe o professor.
Mas Rafael continuava o mesmo cábula de sempre.
Um dia, já a frequentarem o 4.º ano, os pais de Rafael
apareceram na escola para falarem com o professor. Era o dia do João arrumar a
sala embora, quando fosse a vez de qualquer ninja,
o fizesse também. Entretanto, o professor explicava a situação do filho e eles,
em dado momento, perguntaram se havia alguém que o pudesse ajudar. Subitamente,
João dirigiu-se aos três e ofereceu-se para ensinar o colega. O pai, olhando-o
com a mesma arrogância que se conhecia no filho, riu-se, dizendo:
- Cala-te, miúdo e
faz o teu trabalho! O tipo de apoio, que queremos, tu não o podes dar, de
maneira nenhuma!
E João voltou a pegar nos cadernos dos colegas e continuou
a arrumação.
- Talvez seja a solução. – retorquiu o professor.
- Como?! – gritou o pai.
- Deixa ouvir o que o senhor professor tem para nos dizer.
– falou, pela primeira vez, a mãe.
E foi assim que João começou a dar explicações a Rafael.
Porém, ele bem tentou gozar com ele, mostrar que não prestava para nada. Mas,
João, tal como os seus pais e o senhor professor lhe tinham ensinado,
respeitava os seus compromissos. Como tal, se se tinha comprometido a fazê-lo,
era isso que faria.
Um dia, já farto das ofensas do colega, João decidiu-se a
enfrentá-lo.
- Rafael! - disse-lhe ele - Pensas que tenho medo de ti?
Não! Tenho pena. Pena, porque na realidade tu és um desgraçado. A tua força é
só física. Falta-te o poder da mente. Só te temem, não te respeitam. Sabes, se
continuares assim, um dia nem os teus colegas ninjas te vão suportar. Ficarás sozinho, sem amigos, sem ninguém!
Queres ou não aprender?! Queres ou não ganhar o respeito de todos?!
Rafael ficou a olhá-lo entre o admirado e intimidado.
Nunca ninguém lhe tinha falado daquele jeito. Os berros e, às vezes, os
bofetões do pai, as lamúrias da mãe, bem como as reprimendas do professor nunca
o tinham feito sentir-se como naquele instante.
Observou assim o colega e, sem dizer nada, sentou-se na
cadeira, abriu os livros e os cadernos, tirou o lápis do estojo e preparou-se
para aprender.
Hoje, já em pleno século XXI e decorridos quase 20 anos,
João e Rafael são os melhores amigos, estão bem na vida e Rafael ainda se sente
grato pela lição de vida que o amigo lhe deu.
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