O sol abrasador pairava sobre a minha cabeça e
ameaçava o meu já frágil corpo e eu resistia a abandonar-me a essa lânguida
servidão que queria aprisionar-me.
Tudo começou bem cedo. Era um dia igual a tantos
outros. Um dia primaveril em que eu avizinhava a alegria e a esperança.
Sentia-me desperta para a aventura e a confiança com que o encarei não diferiu
de nenhum dos outros.
A Patrícia, a Maria, o Bernardo, o Edgar e o Pedro
apareceram, num atropelo de palavras tal que o ruído tornou-se ensurdecedor.
Juntei-me a este ambiente de puro divertimento, esquecendo a semana de estudo e
de trabalhos da escola e, lançadas as mochilas às costas, encaminhámo-nos para a
praia onde iríamos passar aquele belo dia solarengo.
O dia antevia-se fantástico, com o passeio junto ao
mar e o desfrutar das mornas águas, onde nadámos por entre ondas e, depois, nos
estendemos na dourada areia, gozando o prazer de sentir o calor a sugar a água
salgada dos nossos corpos.
Num ápice chegou a hora de regressarmos e, até
àquele fatídico momento, tudo decorreu numa harmonia ímpar. Diria mesmo
invejável.
Saímos da praia e eu, como sempre, gosto de limpar
bem toda a areia que trago comigo. Não posso ver nem uma pontinha nos meus
“delicados pés”, como dizem em tom de gozo os meus amigos. Mais uma vez, era o
que faziam quando tudo aconteceu. Eles já se distanciavam um pouco de mim,
continuando eu sentada no banco que me servia de poiso. Debruçava-me, então,
sobre os meus pés e não vi o que se passou, apenas ouvi os meus amigos a
gritarem e senti algo de estranho. Senti a vida a fugir-me!
Recordo que senti o carro a esmigalhar-me contra o
banco. Ouvia gritarem o meu nome. Pareceu-me escutar o ruído de ambulâncias
que, na minha dor, tardavam em chegar. Tentei levantar-me, mas não me sentia.
Tentei chorar, porém, nem uma lágrima escorreu. E, nesta minha ânsia, só me
lembrei de ti: mãe! Tentei chamar por ti, mas não tinha voz.
Sinto tudo branco à minha volta e…
Onde será que me encontro?
Ouvi a tua voz. Falavas-me com o carinho de sempre.
Contudo, denotei nela algo que não soube explicar. Invadiu-me uma ânsia que não
compreendi. Havia qualquer coisa de errado. Só não sabia ainda o quê.
Lentamente abri os olhos e vi-te. Disfarçavas as
lágrimas que ainda cobriam o teu belo, mas cansado rosto e pressenti nele o que
ouvi na tua voz. Só continuei a não saber o quê.
A minha coragem estava-me a abandonar, mas a
pergunta impôs-se:
- Mãe, o que é que eu tenho?
- Estás muito cansada, minha querida. Falamos mais
tarde…
- Mãe, por favor! Quero saber agora.
A minha mãe, nesse mesmo instante, olhou para o meu
pai solicitando o seu apoio. Ele levantou-se e foi ele que me falou.
- Querida, o condutor do carro estava alcoolizado,
perdeu o controlo e bateu-te com muita força. Daí resultou uma compressão na
parte lombar da tua coluna. Os médicos dizem que a situação pode durar apenas
alguns meses e não ser definitiva. Ainda é cedo para darem um diagnóstico
definitivo.
- Isso é bom, não é meu amor? - indagou a minha
mãe.
- O que me estão a querer dizer? EU NÃO VOU PODER
ANDAR MAIS?! - gritei eu.
- Filha, acalma-te. Como o papá te disse, ainda não
há certezas.
- Por favor, deixem-me ficar sozinha.
- Mas,… - disseram os dois, em uníssono.
- Por favor, sim?
Depois da saída dos meus pais, o silêncio gritou na
minha cabeça.
Toda a vida que projetei, os meus sonhos, as
expetativas… onde as iria colocar? Como as iria realizar?
Deixei que a torrente de água invadisse os meus
fatigados olhos e senti pena de mim mesma. Eu que gostava de correr, saltar,
nadar e explorar os limites da vida estaria, a partir de então, presa para
sempre a uma cadeira de rodas.
Os sentimentos que tive foram tantos, desde a
revolta ao ódio. Revolta por me encontrar presa a um mundo que não procurei,
ódio por alguém que me transformou, por alguém que não soube beber
moderadamente e que destruiu a vida de outra pessoa inocente. Nesta minha
reflexão viajei pelo mundo da incerteza e da amargura e, embora as palavras do
meu pai tentassem ser de confiança, eu não queria acreditar nessa esperança.
Finalmente, cheguei a um instante de serenidade e,
nesse momento, quis acreditar que não podia deixar-me abater, que poderia
renascer. Tinha de ir à luta. Sim, iria lutar para vencer barreiras e, caso
tivesse de o fazer numa cadeira de rodas, então assim seria, mas não era isso
que iria derrubar os meus sonhos. Perturbou-os sim, acabar com eles, nunca!
Foi com este pensamento que consegui adormecer,
pois, nesse momento, já mais tranquila, sabia que perante as dificuldades,
embora pudessem ser imensas, a minha força de vencer seria sempre superior.
Adriana Matos, O
Ciclista
que escelente lissão de vida.
ResponderEliminar